segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A FILHA - UMA LENDA TUPINIQUIM

No momento em que subia a rampa para receber a faixa de futura mandatária da nação das mãos de um fantoche indicado por seu pai, ela viu nitidamente um filme se desnudar frente aos seus olhos. Não teria mais que quatorze ou quinze anos no dia em que tomou a decisão. Farta dos desmandos de sua família e da completa e insuportável intromissão na sua vida e escolhas, munida unicamente do rascunho do desenho e três doses do melhor uísque do seu pai, entrou de um único solavanco no estúdio de tatuagem e proferiu a sentença de um só golpe deixando o tatuador boquiaberto ao ver o desenho que queria ver impresso em sua pele para o resto da vida.

- Eu quero que faça esse!

Muito se especulou nos anos que se seguiram a saber em que parte do corpo teria deixado o símbolo impresso perpetuamente. As gazetas moderadas insistiam que fora no ombro, outras mais românticas afirmavam ser na barriga, os periódicos mais conservadores garantiam que sem sombra de dúvida isso era uma invenção falaciosa de comunistas e que ela nunca havia feito tatuagem alguma; no entanto, camaradas enraizados da esquerda, pasquins engajados do comunismo e mesmo alguns companheiros do seu tempo de guerrilha asseveravam com toda a convicção que ela tinha tatuado, sem nenhum pudor, a foice e o martelo na bunda.

Sem nunca ter confirmado ou refutado as afirmações de seus colegas de armas, deixara pairar em sua reputação mais esse turvo fato de sua atribulada vida. A única coisa certa e sabida fora a guinada que dera em seu posicionamento em relação a postura política da família. Seu pai, que ascendera ao poder por meio de uma eleição das mais controversas do país, oriundo do submundo mais profundo do pensamento conservador e de direita, anos depois de eleito, encontrou justamente na filha seu maior baluarte de oposição; seus asseclas transbordavam seu gabinete com notícias estarrecedoras das ações subversivas de sua pequena menina. Um obscuro assessor, envolvido num escândalo do assassinato de uma ativista feminista, trouxe-lhe informações seguras de que sua filha participava de movimentos LGBT; um proeminente secretário de estado, citado num inquérito por envolvimento com tráfico de drogas, assegurou que ela fora vista numa reunião do movimento "sem-terra"; seu filho mais velho, graduado senador da república, investigado por enriquecimento ilícito e aquisição suspeita de imóveis, sugeriu que a irmã fosse interditada por ter sido vista participando ativamente de um ato de protesto contra a censura em frente a uma livraria cercada de pelo menos meio cento de esquerdopatas.

A despeito de todas essas denúncias feitas ao seu pai serem verdadeiras ou não, nunca se candidatou a nenhum cargo político pois a esse tempo acreditava que política fosse coisa de homens gagás, corruptos e machistas e tudo que lembrasse seu pai ela estava disposta a esquecer. Ademais, a única coisa verdadeiramente certa, era que sua popularidade cresceu de forma tão avassaladora entre os jovens que, para que participasse dos eventos  de que a acusavam os seguidores do pai, só mesmo estando disfarçada, hábito que adotou sumariamente até depois da revolução para que pudesse fazer caminhadas despretensiosas na praia ou mesmo para que conseguisse assistir os últimos lançamentos no cinema sem que uma multidão de jovens e agora adultos e velhos lhe tolhessem o passo como se fosse uma estrela do rock.

Ainda hoje não se sabe ao certo o motivo pelo qual seu nome passou vários anos no esquecimento da grande mídia. A ala conservadora do país alertava que finalmente havia ganhado juízo e que aqueles anos de flerte com a esquerda não passaram de travessuras da juventude e fim de adolescência. Já os comunistas e esquerdistas nacionais atiravam pelas redes sociais que ela era vítima de um enredado plano de seu pai, já a grossos anos no poder, aliado a grande mídia conservadora com o único objetivo de calar o viés libertário e o caráter socialista de sua luta. O fato foi que seu nome, sua imagem e sua fala ficaram esquecidos até a fragorosa tarde em que as emissoras de TV espoucaram todos os auto-falantes de todas as tevês do país com os vazamentos de áudio, conversas em aplicativos de texto e trocas de email envolvendo seus três irmãos mais velhos, há muitos anos atuando no congresso; os jornais em minutos estamparam as conversas em que seus irmãos atuaram nas fraudulentas vendas da Empresa Nacional do Petróleo, a Empresa Nacional de Cartas e Cargas, nas empresas de transporte público e na criação do imposto sobre o ar que cada cidadão do país estava implicado em pagar desde o momento do seu nascimento e do qual sua família recebeu até aquele momento uma cota exclusiva e vitalícia por terem ganhado, numa licitação inescrupulosa, o direito de explorar a respiração dos contribuintes, pois naquele país, até o ar havia sido privatizado. As grandes mídias conservadoras, as pequenas mídias progressistas, os canais de videos populares da internet, os influenciadores, os blogueiros, todos em uníssono, conflagraram que todo aquele material fora entregue aos jornais e a justiça por ela, a mais jovem e controversa figura daquela família que há muitos anos dirigia os rumos da nação. Seus irmãos, destituídos dos poderes legislativos por renúncias friamente arquitetadas, a fim de escaparem de um linchamento público, além do linchamento midiático e a quase certa prisão, encontraram refúgio nos velhos braços do pai, já há incontáveis anos na presidência, que os enviou para representações diplomáticas longínquas para que gozassem da paz, do esquecimento e da imunidade. 

Foi por esse tempo que rebentou a revolução. Os nove departamentos do norte promulgaram um ato de independência criando a Nova Confederação do Equador e soube-se com grande alvoroço que ela havia se mudado para a Vila do Poti, sede do novo governo confederado. Toda a máquina de informação do governo correu em arvorar que a filha caçula do presidente havia iniciado um grande período sabático e que a essa hora, muito provavelmente, fazia compras na Time Square ou degustava um grande hot dog regado a muita mostarda amarela. O certo é que as lutas armadas se intensificaram pelo interior do rachado país e que os confederados adotavam cada vez mais aguerridas técnicas de guerrilha que, diziam, ela havia aprendido com camaradas cubanos e venezuelanos. Seu pai tratava de desmentir a gravidade do conflito nas redes sociais argumentando que era um conluio de opositores comunistas com o único objetivo de implantar aqui uma nova Canudos, com suas ideias socialistas inspiradas em Antônio Conselheiro, pois como todos sabiam e seus historiadores garantiam, o velho beato não passava de um bolchevique disfarçado que tentara dar cabo da jovem república e implantar nessas terras um regime soviético. No entanto, toda sua propaganda não conseguia esconder as fragrantes derrotas sucessivas que as forças do exército regular sofriam diariamente pelas hostes maltrapilhas dos seguidores de sua filha e maior rival. Ações que começaram como pequenos atentados aos comandantes do exército com o objetivo de minar a frágil inteligência que comandava os combatentes do governo, agora se desnudavam em francas batalhas nos campos de soja, nas alvas plantações de algodão, por entre os imensos campos dos gigantescos geradores de energia eólica, dentro dos prédios públicos, nas avenidas de desfiles cívicos e, sobretudo, de maneira ainda mais encarniçada por todos os meios de mídia e redes de comunicação inventados até aquele momento.

Quando esse terremoto de proporções catastróficas finalmente passou arrasando de uma vez por todas os alicerces históricos daquele pacato país, contam que ela pessoalmente conduziu os guerrilheiros na batalha final que tomou a capital federal e fez questão de invadir o palácio presidencial para finalmente destituir seu pai do trono. Nunca saberemos ao certo o que de fato aconteceu dentro daquelas paredes pintadas com tintas do poder efêmero dos homens. Seus eternos partidários contam que o velho recebeu a filha como alguém que tem um filho restituído de um sequestro e que pungia vê-lo transferir-lhe a faixa entrecortando beijos e ternos abraços. Já os guerrilheiros empedernidos que foram testemunhas oculares asseguram que tiveram que reter o ímpeto da moça para que ela não degolasse o próprio pai com um quicé de castrar suínos. Sabe-se apenas com boa certeza é que o antigo mandatário se recolheu a um sítio de aquisição suspeita no interior de uma província do país depois de transferir o poder a um marionete transitório a fim de que organizassem eleições presidenciais sem as quais o país tinha vivido por três décadas inteiras.

De maneira que no exato momento em que subia a rampa do palácio para receber a faixa presidencial, após vencer uma eleição onde não tinha sofrido nenhum susto quanto a sua consagração eleitoral, recebia de um único baque a suas reminiscências que cobriam mais de trinta anos da vida de uma nação acossada pelos desmandos de sua família e que ela sempre soube, desde a remota manhã em que decidira tatuar a foice e o martelo na bunda que seria a única pessoa capaz de varrê-los do poder para sempre. Por fim, da mesma forma que sua trajetória inexorável ficaria para sempre marcada no história do país, sua frase final no seu discurso de posse ecoaria pelos séculos como uma das mais potentes lendas tupiniquins.

- Tá aí a fraquejada seu velho filho da puta!