segunda-feira, 18 de maio de 2020

O ARTESÃO DAS PALAVRAS


Nunca me recuperarei dessa história. Termino a leitura de "O velho Graça" de Dênis de Moraes, apaixonado, transtornado e destroçado pela narrativa pungente da vida, obra e trajetória de Graciliano Ramos.

Conheci a obra de Graciliano por acaso, em substituição à tentativa infrutífera de tentar ler Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Por achar, à época, impossível a leitura do autor mineiro, tornei a biblioteca, devolvi o livro e topei com Vidas Secas. Se me lembro bem, li o pequeno volume em uma semana - um recorde para mim pois sempre li devagar, cheio de avanços, releituras e retrocessos. Fiquei tonto com a sina dos personagens. Apaixonado por Baleia e intrigado com Fabiano, que se dava melhor com os bichos que com os homens; junto a tudo isso, impressionado com a linguagem áspera, quase tão seca quanto a vida dos personagens retratados.

Muito anos depois, em uma livraria, me deparei com uma edição de bolso de Caetés, que até então não sabia, fora o primeiro livro do autor. A impressão da leitura de Vidas Secas havia ficado tão intimamente gravada em mim que não resisti e comprei o livro a fim de mergulhar mais na obra do célebre alagoano. Apesar de achar Caetés mais pobre, ou ao menos, mais simples que Vidas Secas, encontrei a mesma força na linguagem, a mesma aspereza e também a mesma objetividade em narrar sem rodeios, os conflitos de suas personagens. Com a leitura de Caetés, aliada a leitura anos atrás, de Vidas Secas, fui colocando Graciliano no rol de meus autores favoritos.

Curiosamente, o próximo volume do "velho Graça" que viria parar nas minhas mãos seria São Bernardo, criando assim, uma apreciação cronológica de sua obra. Romance possante, claro, incisivo. Ao saber se tratar justamente de seu segundo livro, pude compreender como tão formidavelmente Graciliano alcançara uma maturidade criativa já em sua segunda publicação. Vamos lá, São Bernardo, não é, no sentido estrito cronológico do tempo, a segunda publicação de Graciliano. Hoje, após a apaixonada leitura de "O velho Graça", sei que o escritor, há bastante tempo, produzia crônicas, contos e outras participações em diversos jornais e frequentava ativamente das principais rodas literárias de seu tempo. No entanto, em São Bernardo, temos o escritor maduro, sedimentado no estilo, consciente da condução de sua ficção e destinos de seus personagens. Um escritor já não disposto a fazer concessões para gravar seu nome no meio literário.

Junto com São Bernardo, ganhei também, uma edição de Angústia. Não saberei explicar o motivo que li tão rapidamente o primeiro e reservei ainda durante um bom tempo o segundo. Junto ao segundo, também ficou a espera a edição relançada em 2012 de "O velho Graça", biografia magnificamente elaborada por Dênis de Moraes, publicada a primeira vez em 1992 por ocasião do centenário de nascimento de Graciliano Ramos. O fato é que o dois livros permaneceram na estante, na calma espera por minha desordem de leituras.

Há coisa de dois meses, chegou a hora dos dois. Primeiro Angústia, afinal, sempre gostei de conhecer o máximo da obra de alguém antes de me aventurar por uma biografia. O biógrafo, muitas das vezes, pode cometer a indelicadeza de revelar além da conta o enredo de alguma ficção do biografado. Dessa forma, mergulhei em Angústia. E mais uma vez Graciliano não decepcionou. Terminei o romance com um sentimento dividido pelo personagem principal, algo entre pena e ódio. Cheguei mesmo a pensar: "que cara burro"! A maestria de Graciliano chega mesmo a nos transferir parte da angústia de Luis Silva que, com certeza, inspirou o título da estória. Sua impotência em mudar sua condição frente a um mundo injusto e insensível. Sua incapacidade de competir com Julião Tavares, suas fraquezas materiais e psicológicas. Tudo forte, potente, definitivo, sem piedade, seco. Como sempre seco.

Sobre a forte impressão de Angústia passei ao "O velho Graça". Comecei desconfiado. No geral biografias me levantam suspeitas. Como descrever um quadro objetivo da vida de alguém? Ainda mais quando admiramos esse alguém? Sobre isso, Dênis de Moraes conseguiu exibir um perspectiva eficiente. Repleto de depoimentos, vasta documentação e pesquisa, nos traz um Graciliano sob diversos pontos de vista. Coeso, coerente, imperfeito, real. Sem excesso de loas ao mestre alagoano, faz um passeio transparente sobre sua difícil infância, seu debater-se entre conciliar o mundo prático e a latente literatura; percorre o pedregoso caminho das injustiças sofridas pelo autor; seu comunismo incondicional sem incorrer em panfletarismo; sua luta melancólica contra a morte.

Volto a dizer. Nunca me recuperarei dessa história. Cheguei a chorar em alguns pontos do livro. Terminei cansado, arrasado, comovido. Eu já gostava do Graciliano, por sua obra, sua figura austera, forte, fiel. Depois do livro do Dênis de Moraes, me confesso apaixonado, quase devoto. Admirador do cidadão e principalmente, do escritor. Para melhor desnudar Graciliano Ramos, Dênis de Moraes, quase que a todo tempo nos transporta ao momento histórico de nosso país e do mundo e todo o impacto que os eventos decisivos de nosso passado tiveram na vida do biografado. Esse importante recurso no faz compreender a dureza de sua vida e, talvez, portanto, a retidão de suas atitudes e aspereza de sua literatura.

Por fim, sobre o escritor, Dênis de Moraes esmiúça o trabalho de um artesão. É possível entender Graciliano como um escultor da palavra. Manejando habilmente um cinzel para construção de uma obra cuja matéria prima são as pedras brutas de seu interior, seus sentimentos, impressões, sonhos, angústias e sua visão de mundo, Graciliano lapidou muito pacientemente, de maneira muito precisa, se esmerando na forma, sem excessos, o que quase poderemos chamar de pragmatismo linguístico, personagens e estórias que refletiam toda sua inquietação e paixão pela frágil condição nordestina, brasileira e humana.

A Dênis de Moraes um retumbante "Muito Obrigado" por trazer a todos um Graciliano, na maioria das vezes desconhecido, e muito por isso, fruto de um retrato distorcido e distanciado do homem sutil, delicado e apaixonado pela humanidade.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

CANTO DESENCANTADO

Por que então o meu desgaste?
Por que de tudo o seu desconto?

A cada canto meu desencanto
minha dor muda
na palma um tapa
à mão estendida
cada sorriso uma mordida
cada mordida o seu escárnio

Por que meu desencanto?
Por que desgosto?

A cada ordem um contraponto
perdido e um tanto tonto
num liderar por liderado
num amargar adocicado
num fadigar inútil e magro
vaga riqueza no resultado

Por que me calo?
Por que me deixo?

O vento leva e o mundo gira
chegada a vez o que farei
destilo ira?
tola vingança?
nem vale a pena
cristalizar nula lembrança

Fica-se o dito por não dito
guardada fica no alheio peito
tola vitória
eu que não fico, nem ficarei
contando ao vento
mixa vanglória.