segunda-feira, 29 de agosto de 2011

FICANDO

instante
instável
breve
leve
levado

ontem
e agora
distante

ida
despedida
desprendido

estático
estáveis
num monte
esperando

...

ando
onde
indo
a esmo
a nado
a nada

a noite
o dia
é um embrião
notívago

...

partiram
pra onde?

no onde
estão
estando

mais ficam
que partem.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

GRAVATA VERMELHA

Formou chuva pras bandas do Cambaio. O céu empreteceu e de cá fiz vista. Mas não desceu o valado e cá ficamos no arraial na mesma seca. Bom seria se chovesse pra que se colhesse alguma água em alguma bica de telhado. Já há muitos dias não podemos chegar na barranca do Vaza-Barris por conta das imundícies que não nos deixam fazendo chover bala em nossas cabeças e há muita sede. Nesse dia eu preparava o animal pra comboiar mais uma vez. Comida era pouca no arraial e dos que se prestaram para esse serviço eu era o último. Troquei as ferraduras da mulinha por umas menos velhas que novas não tínhamos. Escovei. Pus o cabresto. A noite toda foi um tirotear danado pros lados da praça das igrejas. Uma das torres da nova tinha caído e estivemos muito tristes por esse revés. De manhãzinha, o sol nem tinha dado o ar quando pus os arreios na mulinha, atrelei e segui caminho por umas trilhas velhas que mais adiante vão dar na estrada de Uauá. Nessa hora, o tiroteio tinha parado. Aproveitei e segui rumo.

Vadeei por esses caminhos tantos por mais de vinte léguas em busca do que se comesse. Feijão, farinha, milho. Fosse o que fosse. Não achava. Fiquei sabendo que os chefes das tropas tinham proibido a venda pra qualquer um que não estivesse a serviço das imundícies e que não trouxesse carta autorizando que comprasse. As feiras pelos povoados daquele sertão tinham sido canceladas até que a gente estivesse tudo morto, segundo me disse um a quem confidenciei de onde vinha. Esse mesmo velhote foi quem me disse, de uma dona que podia talvez, me vender um pouco de farinha num rancho dali a légua e meia. Toquei pra lá.

Era um ranchinho num plano de tabuleiro no início de uma estrada que terminava nuns morrinhos arredondados e por de trás um chapadão que pela direção ia até as barrancas do São Francisco no divisar com Pernambuco. Era uma casinha boa, com reboco e tudo na parede da frente. Um monturo grande cheio de árvore de fruta; umas boas galinhas gordas de dar gosto. No fundo, uma casa de farinha a distância de uma carreira com uma roça de mandioca do lado, grande e folhuda. Não era mirrado sem também ser de gente de condição.

Uma cabocla da cara vermelha me recebeu com um sorriso meio banguela. Simpática e conversadeira. Indagou do por que da minha visita. Disse que queria comprar farinha. Pagava bem e de a vista. Ela fechou a cara. Acabou o sei gatear de risos; perguntou quem eu era e a mando de quem vinha e de onde vinha. Não menti, não enganei. Disse que vinha do Belo Monte, que nosso bom pastor e sua gente carecia que eu comprasse qualquer de comer. Se ela tivesse uma boa quantidade de farinha pra me vender. Chamava Isaura e me olhou muito séria do cimo ao baixo dos pés. Prefixou como para me testar. “Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!” – “Para sempre seja louvado”, atalhei. Ela amansou o olhar. Com ar muito sério, disse que não havia muita farinha que pudesse me vender, por que a tropa toda semana mandava gente na sua roça comprar a farinha que houvesse e tinham acerto de cinco sacos toda semana; se faltasse o combinado, podiam eles desconfiar. Roguei a ela que ma vendesse, o tanto que pudesse; o povo tinha fome no arraial e a luta a cada dia piorava a situação. Ela olhou-me mais uma vez gravemente. Seus olhos indagavam. Por fim, me perguntou aflita se eu não conheceria acaso uma filha dela, por nome Maria Isabel; dizia ser uma cabocla amulatada que pra lá fora com marido e o seu neto. A ela respondi que muita gente se tinha ido embora fugida pra Várzea da Ema e outros lugares; no Belo Monte, infelizmente os que não tinham morrido, ou morriam por fome, doença ou feridos a bala. Pouca gente prestável por lá agora se achava; alguns poucos ainda pelejam com custo e a mim, cabia o dever de levar o que de comer encontrasse. Ela baixou os olhos um pouco triste, mas com esse meu dizer, conheceu que eu era de bem e disse que ia ver o que podia fazer.

De farinha, me vendeu um saco e meio tirando mesmo de seus mantimentos. Indicou ainda onde eu achasse feijão e outras coisas. Paguei. Carreguei na carroça e me despedi desejando graças e bênçãos aquela boa gente e que nosso pai saberia do seu feito e que teria grande gratidão. Fiz caminho nas direções que me indicou dona Isaura, mas em mais de um povoado antes de chegar tive de esconder a carroça em alguma vereda do caminho, pois em quase todas as povoações tinha gente das imundícies as espreita de fujões ou qualquer coligado de nossa gente.

Por esses dias todos em que cacei comida, dormia no relento, nas veredas mais escondidas, nos valados de rios secos, embaixo da carroça ouvindo cantos de corujas e os grilos tristonhos dos sertões mais secos. Não levava arma que nunca fui dado a valentias e violências e se nosso Senhor não pudesse ser mais por mim aceitava o que me desse por destino.

Dez dias depois de muito carrear por caminhos tantos desse sertão baiano fiz rota de volta. Levava muito pouco pela necessidade dos que ficaram no certo do que eu traria. Era uma saca e meia que dona Isaura me vendera, um meio saco de feijão já velho que comprei de uma família que se mudava para o Juazeiro e um quarto de carneiro seco, já meio querendo apodrecer, conseguido no maior perigo que esse roubei, Deus me perdoe; mas roubei na surdina da madrugada de uns praças de uma patrulha que achei acampados perto de onde pernoitei. Roubo bem roubado, que esses só queriam nosso mal, Deus seja comigo!

Fiz viagem de volta ao Belo Monte. E a volta, pior foi que a ida, tanta gente dos soldados vigiavam as estradas. Mais de uma vez fiz volta com a mula e me embrenhei nas caatingas me arranhando todo e machucando o animal. Dois dias passei a um terço de légua do arraial fazendo volta e esconderijo, buscando os caminhos mais difíceis. Na terceira manhã em que seguia por dentro dos matos mesmo puxando a mula por entre espinhos, cortando galhos a facão, estaquei de chofre. Um converseiro longe. ortando galhos a facespinhos atos mesmo puxando a mula por entre espinhos ndo o animal.pernoitei. , Deus me perdoe; mas roubeAumentava. Cortei pra minha esquerda e fiz rumo de pegar uma estrada. Quando venci a caatinga estatelei de fronte a uma cerca. Ia cortar os arames quando duas praças surgiram do meio do mato e meteram a mão em cima de mim.

“E então meu chegado? Donde voismecê vem que tá na parte de dentro e não na parte da estrada?” Já em tom de galhofa, rápido conheceram pra onde eu ia. “E que carga leva pra um lugar pra onde não tem pra quem vende?” Riam-se muito. Eu quieto fiquei. Perguntaram minha graça. Eu não disse palavra. “Mais um brabo! Vamos ver já já de que é feito!” Disse um deles me tomando o facão e me batendo com uma vara no de trás dos joelhos ao que caí ajoelhado. Em seguida outro veio e me bateu na cabeça e caí me contorcendo.

Tomaram minha carga. Eram quatro. Os dois outros chegaram depois quando eu já estava amarrado nos pés e mãos. Eram a patrulha de quem eu havia roubado o quarto de carneiro seco que no meu rastro tinham vindo quietos, muito astutos. Um dos dois que chegavam vinha a cavalo, parecia ser o cabeça deles, pois os demais o tratavam com maior respeito. Me arrastaram pra dentro do arraial. Já nesse dia o tirotear não era grande e o maior alvoroço vinha do meio da cidadela. Me conduziram por entre muitos casebres nossos. Muitos derruídos, queimados ou ocupados por muitos das imundícies. Todos me olhavam como se a um bicho. Em frente de um casebre com a parede da frente derrubada me pararam. O cabeça dos que me traziam entrou. Algum tempo depois me fizeram entrar. Dentro umas duas mesas faziam um canto na forma de um esquadro. Dois cabras na mesa que ficava de lado escrevinhavam em folhas e na mesa que ficava de frente pra rua um homem com ar muito grave, sério, com uma farda muito enfeitada de penduricalhos coloridos. Me olhou. Indagou de meu nome. Disse não. Perguntou de quem eram as mercadorias que eu levava. Eram minhas respondi. E pra onde eu ia? Me calei. Me disse que sabia qual era o meu trabalho, que eu trazia comida para os jagunços que ainda lutavam. Quis saber se tinham outros feito eu. Me calei de novo. Começou com um palavrório que eu devia de ajudar, que a tal da república queria nosso bem, que quanto mais me calasse mais tempo aquela miséria toda de guerra ia durar. Virei a cara, cuspi no chão. O homem se irritou. Xingou um nome que não entendi e mandou que me levassem preso.

Os dois primeiros que me acharam ao pé da cerca me levaram amarrado, aos solavancos. Fomos se encaminhando para os limites do arraial como quem segue para o Jeremoabo. Quando as casas foram rareando entramos numa capoeira que ia se fechando numa caatinga. Contornamos umas árvores e conheci meu terrível destino. Um bando! Muitos dos nossos, mortos, caídos como animais abatidos jaziam com as gargantas abertas. Um cheiro de podre fechou o ar em nossa volta. Caminhamos um pouco entre os corpos dos meus. Paramos num meio claro onde ainda não havia muitos corpos. Olhei no envolta. Um par de corpos me chamou a atenção. Uma cabocla amulatada abraçada com uma criança, de um jeito que eu quis achar muito parecida com a filha da velha Isaura que me havia tão bondosamente vendido a farinha. Será que ela havia de ter caído mesmo na mão das imundícies? Onde estava nosso bom pai Conselheiro a essa hora? Não dava mais conta de olhar os nossos que caiam como reses abatidas? Desde a hora que eu tinha caído nas mãos daqueles cabras essa foi a primeira em que quis fraquejar, mas um choro de criança me salvou da fraqueza. Nos braços da cabocla, a criança, um menino sambudo desatou a chorar! Ainda estava vivo. Na verdade talvez nem tivesse sofrido ferimento. Quem fez o que fez, de certo arrependido não ombreou coragem de fazer o mesmo ao menino que fez à mãe e o menino ficou naquele regaço e agora dava alarde de vida.

Os que comigo foram de bondade não salvavam ninguém. O que foi de escolta arrancou o menino dos braços de sua defunta mãe. Ergueu de uma só braçada e ligeiro num só golpe arrancou da parnaíba que trazia na cintura e sangrou o infeliz menino pelo pescoço como a um leitão. Atirou o corpo aos carcarás que ali se banqueteavam.

Me olharam muito sério, como me sentenciando. Depois riram de canto de boca, de escárnio. Pedi que soltassem minhas mãos, os olhando também muito sério. Eles se entreolharam. Acederam. Um desatou o nó de minhas mãos; o outro fazia pontaria de uma garrucha em minha cara. Eu conhecia meu fim. Me resignei. Queria apenas as mãos livres. Isso a eles disse. Me ajoelhei. O que desatou o nó puxou da faca. Ia me puxando pelos buracos do nariz para que esticasse o pescoço. Fiz com a mão que não. Ele parou. Não tinha jeito. Fiz meu pelo sinal. Estava entregue. Estiquei bem a garganta e um frio queimante correu meu pescoço que ardia no rubro, meu último sentir. Caí num sufocar empoeirado e um turvo fusco se fez nos olhos e o ardor desaparecia. Eu desaparecia em carne.

Vaguei por aqueles montes de corpos de meus irmãos insepultos. Vi o estrebuchar dos últimos nossos que lutaram até a última bala. Meu fantasma viu as tropas se irem galhofeiros e contadores de vantagem. Sua bravura no esfaquear mulher e menino que nada podiam. Vi a profecia de nosso bom pai Conselheiro se concretizar no se esconder o mal feito daqueles homens tão brutos quanto nós a quem eles combatiam. O sertão, o nosso sertão de Canudos, nossa cidadela tapuia, virou mar, como bem disse o Conselheiro, e hoje eu, fantasma que vago pelas águas, velo as almas dos que tombaram pela lâmina dos que tinham o dever de preservar suas vidas.

Achei este conto bem fraco, mas na verdade, seu principal objetivo é ainda hoje denunciar a terrível prática das tropas governamentais que operaram na guerra de Canudos. A degola que ficou conhecida como “gravata vermelha”, não poupou rendidos, capturados ou mesmo mulheres e crianças que a despeito de lutarem contra aquelas tropas, também faziam parte da Nova República que tais militares juravam defender.


Os que praticaram, consentiram ou ainda omitiram tal prática não devem figurar em nenhum rol de glórias e congratulações. Canudos permanece como uma mácula nas mãos da República, nas mãos daqueles homens tão brutos e bestiais quanto os que eles julgavam matar.