domingo, 18 de fevereiro de 2024

BRUTO LIRISMO

Reencontrei-me com os versos de Carlos
ando saudoso dos versos de Cecília
de quanto em vez lembro dos versos de Manuel
e já por muito tempo tenho sentido falta de mim
que nem sei por onde tenho andado

tanta entrega
tanta doação
e o pagamento vem em parcelas de salário
qual de um professor Raimundo

mas o certo era não esperar nada

apenas mergulhar no encontro das canções de Carlos
na saudade dos versos de Cecília
nas citações de Manuel
e na estupefação
do lirismo bruto de Bukowski.

sábado, 13 de maio de 2023

OGRO CALADO

Se não faço
arco por não feito
que de responsável é o meu quinhão

se busco fazer
ativo ou altivo: mesmo resultado
uma reprovação

ainda que caminhe por esse vale
já não vale
ou eu não valho

qualquer atitude
não há que mude
a pronta opinião.

Uma queixa nunca
jamais
já me queixei demais

será sentença
mais que certa
que o mesmo não certo

vai no meu ser empenado
sem vontade
e calado

perfeita emulação
do perfeito
sem atrito

ou fricção
que a harmonia do esperar
é preceito

da básica e boa
compreensão
do imperfeito.

No mais
é viver assim desse jeito
que querer outro

é certeza de malogro
ou viver aos berros
feito ogro.

terça-feira, 15 de março de 2022

Engolfamento

Um dia terei de volta

a espessa névoa de mistério que a tudo encantava?

Um dia a fome incauta
acordará do berço em que soçobra?

E esse morno em que se entorna
em que descanso essa madorna

E esse vaso? Essa vazão sem volta?
essa revolta em que me envaso

A fúria doce que me arrebatara
onde repousa tal gema rara?

Onde ocultara a estrela primeira
de minha juventude atravessada?

Um afogamento a tudo afunda
Que a tudo e a todos o tédio abunda.

Abunda o bumbo, bambo bobeira
Repique rápido rasteira

E o mistério que encantava
E a fome incauta

Permanecem imersos na espessa névoa
que a tudo engolfa.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O ARTESÃO DAS PALAVRAS


Nunca me recuperarei dessa história. Termino a leitura de "O velho Graça" de Dênis de Moraes, apaixonado, transtornado e destroçado pela narrativa pungente da vida, obra e trajetória de Graciliano Ramos.

Conheci a obra de Graciliano por acaso, em substituição à tentativa infrutífera de tentar ler Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Por achar, à época, impossível a leitura do autor mineiro, tornei a biblioteca, devolvi o livro e topei com Vidas Secas. Se me lembro bem, li o pequeno volume em uma semana - um recorde para mim pois sempre li devagar, cheio de avanços, releituras e retrocessos. Fiquei tonto com a sina dos personagens. Apaixonado por Baleia e intrigado com Fabiano, que se dava melhor com os bichos que com os homens; junto a tudo isso, impressionado com a linguagem áspera, quase tão seca quanto a vida dos personagens retratados.

Muito anos depois, em uma livraria, me deparei com uma edição de bolso de Caetés, que até então não sabia, fora o primeiro livro do autor. A impressão da leitura de Vidas Secas havia ficado tão intimamente gravada em mim que não resisti e comprei o livro a fim de mergulhar mais na obra do célebre alagoano. Apesar de achar Caetés mais pobre, ou ao menos, mais simples que Vidas Secas, encontrei a mesma força na linguagem, a mesma aspereza e também a mesma objetividade em narrar sem rodeios, os conflitos de suas personagens. Com a leitura de Caetés, aliada a leitura anos atrás, de Vidas Secas, fui colocando Graciliano no rol de meus autores favoritos.

Curiosamente, o próximo volume do "velho Graça" que viria parar nas minhas mãos seria São Bernardo, criando assim, uma apreciação cronológica de sua obra. Romance possante, claro, incisivo. Ao saber se tratar justamente de seu segundo livro, pude compreender como tão formidavelmente Graciliano alcançara uma maturidade criativa já em sua segunda publicação. Vamos lá, São Bernardo, não é, no sentido estrito cronológico do tempo, a segunda publicação de Graciliano. Hoje, após a apaixonada leitura de "O velho Graça", sei que o escritor, há bastante tempo, produzia crônicas, contos e outras participações em diversos jornais e frequentava ativamente das principais rodas literárias de seu tempo. No entanto, em São Bernardo, temos o escritor maduro, sedimentado no estilo, consciente da condução de sua ficção e destinos de seus personagens. Um escritor já não disposto a fazer concessões para gravar seu nome no meio literário.

Junto com São Bernardo, ganhei também, uma edição de Angústia. Não saberei explicar o motivo que li tão rapidamente o primeiro e reservei ainda durante um bom tempo o segundo. Junto ao segundo, também ficou a espera a edição relançada em 2012 de "O velho Graça", biografia magnificamente elaborada por Dênis de Moraes, publicada a primeira vez em 1992 por ocasião do centenário de nascimento de Graciliano Ramos. O fato é que o dois livros permaneceram na estante, na calma espera por minha desordem de leituras.

Há coisa de dois meses, chegou a hora dos dois. Primeiro Angústia, afinal, sempre gostei de conhecer o máximo da obra de alguém antes de me aventurar por uma biografia. O biógrafo, muitas das vezes, pode cometer a indelicadeza de revelar além da conta o enredo de alguma ficção do biografado. Dessa forma, mergulhei em Angústia. E mais uma vez Graciliano não decepcionou. Terminei o romance com um sentimento dividido pelo personagem principal, algo entre pena e ódio. Cheguei mesmo a pensar: "que cara burro"! A maestria de Graciliano chega mesmo a nos transferir parte da angústia de Luis Silva que, com certeza, inspirou o título da estória. Sua impotência em mudar sua condição frente a um mundo injusto e insensível. Sua incapacidade de competir com Julião Tavares, suas fraquezas materiais e psicológicas. Tudo forte, potente, definitivo, sem piedade, seco. Como sempre seco.

Sobre a forte impressão de Angústia passei ao "O velho Graça". Comecei desconfiado. No geral biografias me levantam suspeitas. Como descrever um quadro objetivo da vida de alguém? Ainda mais quando admiramos esse alguém? Sobre isso, Dênis de Moraes conseguiu exibir um perspectiva eficiente. Repleto de depoimentos, vasta documentação e pesquisa, nos traz um Graciliano sob diversos pontos de vista. Coeso, coerente, imperfeito, real. Sem excesso de loas ao mestre alagoano, faz um passeio transparente sobre sua difícil infância, seu debater-se entre conciliar o mundo prático e a latente literatura; percorre o pedregoso caminho das injustiças sofridas pelo autor; seu comunismo incondicional sem incorrer em panfletarismo; sua luta melancólica contra a morte.

Volto a dizer. Nunca me recuperarei dessa história. Cheguei a chorar em alguns pontos do livro. Terminei cansado, arrasado, comovido. Eu já gostava do Graciliano, por sua obra, sua figura austera, forte, fiel. Depois do livro do Dênis de Moraes, me confesso apaixonado, quase devoto. Admirador do cidadão e principalmente, do escritor. Para melhor desnudar Graciliano Ramos, Dênis de Moraes, quase que a todo tempo nos transporta ao momento histórico de nosso país e do mundo e todo o impacto que os eventos decisivos de nosso passado tiveram na vida do biografado. Esse importante recurso no faz compreender a dureza de sua vida e, talvez, portanto, a retidão de suas atitudes e aspereza de sua literatura.

Por fim, sobre o escritor, Dênis de Moraes esmiúça o trabalho de um artesão. É possível entender Graciliano como um escultor da palavra. Manejando habilmente um cinzel para construção de uma obra cuja matéria prima são as pedras brutas de seu interior, seus sentimentos, impressões, sonhos, angústias e sua visão de mundo, Graciliano lapidou muito pacientemente, de maneira muito precisa, se esmerando na forma, sem excessos, o que quase poderemos chamar de pragmatismo linguístico, personagens e estórias que refletiam toda sua inquietação e paixão pela frágil condição nordestina, brasileira e humana.

A Dênis de Moraes um retumbante "Muito Obrigado" por trazer a todos um Graciliano, na maioria das vezes desconhecido, e muito por isso, fruto de um retrato distorcido e distanciado do homem sutil, delicado e apaixonado pela humanidade.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

CANTO DESENCANTADO

Por que então o meu desgaste?
Por que de tudo o seu desconto?

A cada canto meu desencanto
minha dor muda
na palma um tapa
à mão estendida
cada sorriso uma mordida
cada mordida o seu escárnio

Por que meu desencanto?
Por que desgosto?

A cada ordem um contraponto
perdido e um tanto tonto
num liderar por liderado
num amargar adocicado
num fadigar inútil e magro
vaga riqueza no resultado

Por que me calo?
Por que me deixo?

O vento leva e o mundo gira
chegada a vez o que farei
destilo ira?
tola vingança?
nem vale a pena
cristalizar nula lembrança

Fica-se o dito por não dito
guardada fica no alheio peito
tola vitória
eu que não fico, nem ficarei
contando ao vento
mixa vanglória.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A FILHA - UMA LENDA TUPINIQUIM

No momento em que subia a rampa para receber a faixa de futura mandatária da nação das mãos de um fantoche indicado por seu pai, ela viu nitidamente um filme se desnudar frente aos seus olhos. Não teria mais que quatorze ou quinze anos no dia em que tomou a decisão. Farta dos desmandos de sua família e da completa e insuportável intromissão na sua vida e escolhas, munida unicamente do rascunho do desenho e três doses do melhor uísque do seu pai, entrou de um único solavanco no estúdio de tatuagem e proferiu a sentença de um só golpe deixando o tatuador boquiaberto ao ver o desenho que queria ver impresso em sua pele para o resto da vida.

- Eu quero que faça esse!

Muito se especulou nos anos que se seguiram a saber em que parte do corpo teria deixado o símbolo impresso perpetuamente. As gazetas moderadas insistiam que fora no ombro, outras mais românticas afirmavam ser na barriga, os periódicos mais conservadores garantiam que sem sombra de dúvida isso era uma invenção falaciosa de comunistas e que ela nunca havia feito tatuagem alguma; no entanto, camaradas enraizados da esquerda, pasquins engajados do comunismo e mesmo alguns companheiros do seu tempo de guerrilha asseveravam com toda a convicção que ela tinha tatuado, sem nenhum pudor, a foice e o martelo na bunda.

Sem nunca ter confirmado ou refutado as afirmações de seus colegas de armas, deixara pairar em sua reputação mais esse turvo fato de sua atribulada vida. A única coisa certa e sabida fora a guinada que dera em seu posicionamento em relação a postura política da família. Seu pai, que ascendera ao poder por meio de uma eleição das mais controversas do país, oriundo do submundo mais profundo do pensamento conservador e de direita, anos depois de eleito, encontrou justamente na filha seu maior baluarte de oposição; seus asseclas transbordavam seu gabinete com notícias estarrecedoras das ações subversivas de sua pequena menina. Um obscuro assessor, envolvido num escândalo do assassinato de uma ativista feminista, trouxe-lhe informações seguras de que sua filha participava de movimentos LGBT; um proeminente secretário de estado, citado num inquérito por envolvimento com tráfico de drogas, assegurou que ela fora vista numa reunião do movimento "sem-terra"; seu filho mais velho, graduado senador da república, investigado por enriquecimento ilícito e aquisição suspeita de imóveis, sugeriu que a irmã fosse interditada por ter sido vista participando ativamente de um ato de protesto contra a censura em frente a uma livraria cercada de pelo menos meio cento de esquerdopatas.

A despeito de todas essas denúncias feitas ao seu pai serem verdadeiras ou não, nunca se candidatou a nenhum cargo político pois a esse tempo acreditava que política fosse coisa de homens gagás, corruptos e machistas e tudo que lembrasse seu pai ela estava disposta a esquecer. Ademais, a única coisa verdadeiramente certa, era que sua popularidade cresceu de forma tão avassaladora entre os jovens que, para que participasse dos eventos  de que a acusavam os seguidores do pai, só mesmo estando disfarçada, hábito que adotou sumariamente até depois da revolução para que pudesse fazer caminhadas despretensiosas na praia ou mesmo para que conseguisse assistir os últimos lançamentos no cinema sem que uma multidão de jovens e agora adultos e velhos lhe tolhessem o passo como se fosse uma estrela do rock.

Ainda hoje não se sabe ao certo o motivo pelo qual seu nome passou vários anos no esquecimento da grande mídia. A ala conservadora do país alertava que finalmente havia ganhado juízo e que aqueles anos de flerte com a esquerda não passaram de travessuras da juventude e fim de adolescência. Já os comunistas e esquerdistas nacionais atiravam pelas redes sociais que ela era vítima de um enredado plano de seu pai, já a grossos anos no poder, aliado a grande mídia conservadora com o único objetivo de calar o viés libertário e o caráter socialista de sua luta. O fato foi que seu nome, sua imagem e sua fala ficaram esquecidos até a fragorosa tarde em que as emissoras de TV espoucaram todos os auto-falantes de todas as tevês do país com os vazamentos de áudio, conversas em aplicativos de texto e trocas de email envolvendo seus três irmãos mais velhos, há muitos anos atuando no congresso; os jornais em minutos estamparam as conversas em que seus irmãos atuaram nas fraudulentas vendas da Empresa Nacional do Petróleo, a Empresa Nacional de Cartas e Cargas, nas empresas de transporte público e na criação do imposto sobre o ar que cada cidadão do país estava implicado em pagar desde o momento do seu nascimento e do qual sua família recebeu até aquele momento uma cota exclusiva e vitalícia por terem ganhado, numa licitação inescrupulosa, o direito de explorar a respiração dos contribuintes, pois naquele país, até o ar havia sido privatizado. As grandes mídias conservadoras, as pequenas mídias progressistas, os canais de videos populares da internet, os influenciadores, os blogueiros, todos em uníssono, conflagraram que todo aquele material fora entregue aos jornais e a justiça por ela, a mais jovem e controversa figura daquela família que há muitos anos dirigia os rumos da nação. Seus irmãos, destituídos dos poderes legislativos por renúncias friamente arquitetadas, a fim de escaparem de um linchamento público, além do linchamento midiático e a quase certa prisão, encontraram refúgio nos velhos braços do pai, já há incontáveis anos na presidência, que os enviou para representações diplomáticas longínquas para que gozassem da paz, do esquecimento e da imunidade. 

Foi por esse tempo que rebentou a revolução. Os nove departamentos do norte promulgaram um ato de independência criando a Nova Confederação do Equador e soube-se com grande alvoroço que ela havia se mudado para a Vila do Poti, sede do novo governo confederado. Toda a máquina de informação do governo correu em arvorar que a filha caçula do presidente havia iniciado um grande período sabático e que a essa hora, muito provavelmente, fazia compras na Time Square ou degustava um grande hot dog regado a muita mostarda amarela. O certo é que as lutas armadas se intensificaram pelo interior do rachado país e que os confederados adotavam cada vez mais aguerridas técnicas de guerrilha que, diziam, ela havia aprendido com camaradas cubanos e venezuelanos. Seu pai tratava de desmentir a gravidade do conflito nas redes sociais argumentando que era um conluio de opositores comunistas com o único objetivo de implantar aqui uma nova Canudos, com suas ideias socialistas inspiradas em Antônio Conselheiro, pois como todos sabiam e seus historiadores garantiam, o velho beato não passava de um bolchevique disfarçado que tentara dar cabo da jovem república e implantar nessas terras um regime soviético. No entanto, toda sua propaganda não conseguia esconder as fragrantes derrotas sucessivas que as forças do exército regular sofriam diariamente pelas hostes maltrapilhas dos seguidores de sua filha e maior rival. Ações que começaram como pequenos atentados aos comandantes do exército com o objetivo de minar a frágil inteligência que comandava os combatentes do governo, agora se desnudavam em francas batalhas nos campos de soja, nas alvas plantações de algodão, por entre os imensos campos dos gigantescos geradores de energia eólica, dentro dos prédios públicos, nas avenidas de desfiles cívicos e, sobretudo, de maneira ainda mais encarniçada por todos os meios de mídia e redes de comunicação inventados até aquele momento.

Quando esse terremoto de proporções catastróficas finalmente passou arrasando de uma vez por todas os alicerces históricos daquele pacato país, contam que ela pessoalmente conduziu os guerrilheiros na batalha final que tomou a capital federal e fez questão de invadir o palácio presidencial para finalmente destituir seu pai do trono. Nunca saberemos ao certo o que de fato aconteceu dentro daquelas paredes pintadas com tintas do poder efêmero dos homens. Seus eternos partidários contam que o velho recebeu a filha como alguém que tem um filho restituído de um sequestro e que pungia vê-lo transferir-lhe a faixa entrecortando beijos e ternos abraços. Já os guerrilheiros empedernidos que foram testemunhas oculares asseguram que tiveram que reter o ímpeto da moça para que ela não degolasse o próprio pai com um quicé de castrar suínos. Sabe-se apenas com boa certeza é que o antigo mandatário se recolheu a um sítio de aquisição suspeita no interior de uma província do país depois de transferir o poder a um marionete transitório a fim de que organizassem eleições presidenciais sem as quais o país tinha vivido por três décadas inteiras.

De maneira que no exato momento em que subia a rampa do palácio para receber a faixa presidencial, após vencer uma eleição onde não tinha sofrido nenhum susto quanto a sua consagração eleitoral, recebia de um único baque a suas reminiscências que cobriam mais de trinta anos da vida de uma nação acossada pelos desmandos de sua família e que ela sempre soube, desde a remota manhã em que decidira tatuar a foice e o martelo na bunda que seria a única pessoa capaz de varrê-los do poder para sempre. Por fim, da mesma forma que sua trajetória inexorável ficaria para sempre marcada no história do país, sua frase final no seu discurso de posse ecoaria pelos séculos como uma das mais potentes lendas tupiniquins.

- Tá aí a fraquejada seu velho filho da puta!

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ARMISTÍCIO

Ainda chove
a canhoaria ecoa lá fora
há guerra!
sobretudo de palavras
que perfuram espíritos, finas balas
afiadas baionetas de ideias inconciliáveis

Nada importa que sangre
que chore
ou queime
que não queime mais que a certeza
que a lágrima cristalina do ponto
de vista
que sangue rival desça aos borbotões
por uma escada de degraus irregulares

de sabores mais destaque à vendetta
fria ou quente, tanto faz
que de comê-la tanto se apraz
sentado ao sol, à chuva
à esquerda ou à direita.

Sobeja a fome
e o escárnio
de se comer com dentes à mostra

Nas trincheiras apreensão
soam longe os canhões
ou batem à porta?
já entraram pelas escolas?
circulam nas ruas?
estão nos postos de gasolina?
na próxima esquina?

De que matéria é feita esse inimigo?
soube que de tessitura muito parecida a homens
parece com o colega ao lado
com a minha própria carne se parece
disseram que sofrem dos mesmos achaques
da gente comum do meu bairro
vão ao mesmo posto de saúde que nossos filhos
também levar seus filhos a curar pústulas e outras coisas da meninice
no mesmo banco de igreja se sentam
talvez teçam as mesmas orações inseguras
de todos sob teto sagrado.

Ainda chove lá fora
às vezes chove aqui dentro
tiros e canhões seguem sua orquestração desarrumada
esperar?
talvez
por um raio de sol
por uma trégua
talvez
passar a ação

Hoje de manhã um menino colheu flores
na escola deu ao soldado
deu ao colega do time de futebol rival
deu a professora
deu a menina do sorriso lindo e que ele gosta
e ainda que continuasse a chuva interminável
abriu um sorriso
por que ele sempre soube
que não pode chover para sempre.