domingo, 16 de março de 2014

PROMOÇÃO REPUBLICANA

Felicíssimo Patriota acordou exultante naquela longínqua manhã de uma morna sexta-feira de novembro. Pulou da cama mais depressa que o habitual, banhou-se, barbeou-se, fardou-se e tomou o bonde para o quartel onde iria, naquele dia, ser alçado à graduação de cabo do Imperial Exército Brasileiro. Além de um soldo maior, poderia enfim, ter o prazer de mandar sem o quê, ao seu ver, o ofício militar não tinha prazer algum. Ainda que a graduação fosse baixa, ao menos os praças e anspeçadas teriam de passar por seu crivo.

Ao chegar ao quartel, o dia ainda turvo e com um sol tímido, encontrou uma movimentação incomum dos praças e um pequeno grupo de superiores a se agitar no pátio central. Tocou para a seção administrativa a fim de acertar os últimos detalhes burocráticos de sua promoção e solicitar sua nova farda com as indicações de sua nova graduação. Topou com o balcão fechado. Bateu timidamente uma porta lateral ao balcão de atendimento. Sem sucesso, tomou à mão a maçaneta, viu que estava destrancada e abriu.

Um tenente, sério, debruçado, parecia rabiscar instruções. Levantou rapidamente o olhar:

- Minha montaria está pronta?

- Senhor, perdoe-me, vim aqui tratar de minha promoção a cabo... desconheço de sua montaria.

- Ora, não há mais tempo de promoções no império! Vamos à revolução!! – disse levantando-se.

- Mas senhor...

- Vamos anspeçada!! Ao pátio, junte-se aos demais! A República fará sua promoção!!

O tenente saiu da sala deixando Felicíssimo ainda na porta com a mão na maçaneta. Já àquela altura o quartel era uma balbúrdia com os corredores lotados de soldados e oficiais de diversas patentes que se dirigiam para pátio aos gritos de “Viva a República!”.

Atordoado não restou senão a Felicíssimo Patriota se juntar, contrariado, ao seu pelotão ainda com as insígnias de anspeçada. Já ouvira falar em república através de vários colegas de farda, porém, desconhecia por completo sua essência, seu conteúdo, pra que servia, como se organizava. Não compreendia o alvoroço em torno de algo que ignorava, que não compreendia. Algo que imaginava distante e espectral como um mito. República pelo seu estreito entender não era coisa desse mundo e passou a senti-la como alguma coisa antipática, entediante e aziaga, uma vez que o tumulto de seus vivas, num movimento que ele ainda não entendia o que era, tolhera sua almejada promoção.

Quando deu por si, estava já em formação com o seu pelotão. Um superior à frente, montava um belo cavalo e, de espada em punho vociferava palavras de ordem, as quais Felicíssimo, por ser um dos últimos na formação, não podia entender dada a distância. Entre dentes, perguntou ao colega da frente:

- O que está acontecendo? Temos parada?

- Vamos nos juntar ao Marechal Deodoro! Dizem que proclamará a república hoje!!

- Mas logo hoje? – emendou Felicíssimo quase com um esperneio infantil.

Angustiado com a situação de sua promoção que não concretizara até o momento, Felicíssimo sequer ponderou o peso da frase de seu colega. Ao passo de entrar para a história de seu País, estava muito mais preocupado de como ficaria sua situação do que com os rumos que a nação tomaria daquele momento em diante. Pouco lhe importava que uma monarquia de mais de sessenta anos caísse, não lhe preocupava como seria a vida numa república, quem os governaria, se haveria resistência ao novo regime. O que lhe dava calafrios, o que realmente lhe preocupava naquela manhã morna de novembro era o que seria feito de sua promoção.

Marcharam. Pelas ruas da cidade a passagem da tropa despertava alguma curiosidade aos poucos transeuntes que toparam. Pelo itinerário descrito Felicíssimo Patriota conheceu que se dirigiam ao Quartel General do Exército no Campo de Santana. No caminho, outros batalhões foram se juntando ao seu e ao chegarem ao Campo eram uma massa grande e não muito ordenada ao se apresentarem no largo em frente ao Quartel General.

Assentado em fileiras muito ao final da tropa, Felicíssimo não lograva ver o que se desenrolava em frente ao palácio do QG do exército. Uns davam vivas ao Marechal Deodoro que diziam estar a frente da parada improvisada pelos militares; outros diziam que o comando da revolução pedira a cabeça do imperador. Outros juravam que viram o chefe do ministério, o Visconde de Ouro Preto ser preso. De fato espalhou-se como um rastilho de pólvora a notícia de que o ministério do império tinha caído e que o Marechal Deodoro havia proclamado a república.

Alheio a movimentação Felicíssimo estava aborrecido com o acontecimento inusitado a que fora impelido e começava a sentir náuseas só de ouvir dizer a palavra república. Não fosse essa maldita palavra, instituição ou sei lá o quê, a essa hora estaria gozando os prazeres de ser cabo. Porém, não se insubordinou, manteve o posto durante muitas horas até que seus superiores ordenassem que as tropas tornassem aos seus batalhões de origem e lá aguardassem novas instruções.

No caminho, no entanto, as tropas foram se dispersando pelos bairros e muitos soldados abandonaram a marcha para confraternizar e beber em comemoração pela implantação do novo regime. Os grupos que chegaram aos quartéis foram bem menores que os que saíram. Felicíssimo também aproveitou a desordem para sorrateiramente debandar. Na esquina antes de chegar ao quartel, tomou um bonde e seguiu, cansado, aborrecido e frustrado para casa.

Morava com a mãe e apesar de já ter a idade, não havia encontrado pretendente com quem firmasse uma família. Antônia Quintina Patriota, sua mãe, era uma velha escrava que fora libertada pela Lei Áurea. Felicíssimo era filho bastardo de um padre que sua mãe conheceu quando jovem no termo da Vila de Capivari, interior da província do Rio de Janeiro, quando era escrava de uma decadente fazenda de cana-de-açúcar. Sacudido por uma crise de culpa e atendendo aos rogos da mãe, o padre Manoel Felício Imaculado, pai de Felicíssimo, conseguiu a liberdade do menino junto ao fazendeiro e aos nove anos, enviou o menino à Corte aos cuidados de sua irmã a fim de que o menino pudesse estudar e mais tarde ingressar na carreira militar. Uma forma comum e trivial de fugir à miséria no tempo.

Quando eclodiu a lei que pôs fim a escravidão, o rapaz, já ingressado no Exército Imperial, pediu dispensa do uso dos alojamentos militares, alugou um pequeno casebre nos subúrbios da Leopoldina e, saudoso da mãe que raríssimas vezes vira ao longo da vida, mandou buscá-la a fim de que gozasse na corte seu final de vida, até então consumida em trabalhos e castigos na velha fazenda do interior da província.

Antônia, quando viu o filho chegar amuado, recolher-se ao pequeno quarto sem dizer palavra, foi ver o que havia acontecido:

- O que foi meu filho, que “chegasse” com essa cara de sexta-feira da paixão?

- Maçadas minha mãe! O serviço hoje foi uma maçada!!

- E tua promoção como foi?

- Não houve promoção alguma. Inventaram uma tal de república hoje! Uma embrulhação que nada entendi.

- Repu... o quê? – indagou a velha negra.

- República mãe! Uma invenção dos diabos que até agora não entendi pra que serve. Dizem que derrubaram o imperador e teremos um presidente.. algo assim... sei lá!

- E tua promoção? Como fica?

- Amanhã volto ao regimento! Hão se haver comigo! Tenho o requerimento com a outorga imperial! Terão de me promover ou não me chamo Felicíssimo Patriota!

- Durma meu filho que Deus ajeita as coisas! – fez uma pausa – Repúblia? É isso?

- Pública minha mãe! Re – pú – bli – ca! Coisa do cão, só pode! Uma boa noite pra senhora.

Dormiu que não dormiu, inquieto a noite inteira, revirando-se de raiva por que não lhe concluíram a promoção. O sol não havia raiado e já estava de pé, olhando no espelho indignado por usar a mesma velha farda com insígnia que já não lhe cabia. Sua mãe já de pé, lavava a roupa da freguesia, trabalho que adotou ao chegar na corte a fim de complementar a renda com o parco soldo do filho.

- Quer café meu filho?

- Não minha mãe! Obrigado! Quero encontrar o regimento vazio a resolver meu problema na primeira hora!

Chegou ao quartel e não encontrou o tumulto do dia anterior. Alguns poucos soldados trabalhavam na fachada do prédio ao que lhe pareceu retirarem as armas e brasões do império. Não se ateve. Seguiu e dessa vez encontrou o balcão de atendimento aberto. Um suboficial o atendeu:

- Bom dia, anspeçada! O que deseja?

- Senhor, anspeçada não, cabo! – desdobrou o requerimento com carimbo de outorga concedendo sua promoção. – Vim justo aqui, pela segunda vez a fim de tratar de minha promoção. Também requeiro ao senhor a insígnia e novo uniforme para me apresentar de acordo.

- Deixe-e me olhar esse papel? Quando o senhor esteve aqui?

- Ora, ontem pela manhã! Mas ou outro oficial que aqui estava falou de uma tal de república e não deu andamento ao meu processo.

- Cidadão, as promoções com outorga do império estão suspensas! Uma junta especial que será designada pelo governo provisório da república avaliará o seu caso. E cidadão, mais respeito ao referir-se a essa “tal” república!

Felicíssimo corou de ódio.

- Senhor me desculpe, mas respeito é uma coisa com que me têm faltado desde ontem as pessoas desse regimento. Que república? Que junta? Que governo provisório? O senhor não vê o carimbo de outorga do exercito imperial? Fui graduado a cabo há uma semana e no dia de concluir o processo me aparece uma maçada dessas de república? Ora, às favas com essa república!!

- Anspeçada! O senhor está preso! Soldados, levem este monarquista para a prisão. Conste nos autos desrespeito a república, insubordinação e fomento de ideias de restauração do antigo regime!

Antes que Felicíssimo pudesse reagir, um grupo de quatro soldados investiu contra seu raquítico corpo e o conduziu a um fétido calabouço nos fundos do prédio do quartel. Muitos dias se passaram sem que visse a luz do sol. Emagreceu. Adoeceu. Tanto mais de raiva que pelas péssimas condições a que fora submetido. Trinta dias se passariam até que se lembrassem dele. Seu antigo comandante, que havia lhe concedido a promoção e feito a petição junto ao comando superior deu por sua falta nos dias seguintes. Como se recordava de tê-lo visto na marcha do dia da Proclamação, começou a procurá-lo. Não deu pelo registro de sua prisão na ordem do dia 16 pois naqueles primeiros dias de república, muita era a desordem e atropelamento com que se resolviam as coisas. Deu-lhe então de perguntar, boca a boca onde estaria Felicíssimo. Um dos soldados que efetuou sua prisão foi quem deu a saber ao comandante do paradeiro de seu mal fadado “cabo”.

Raimundo Fidalgo Real, comandante de Felicíssimo consultou a documentação da prisão do subordinado e foi ver com os próprios olhos a embrulhada em que seu ex-futuro-cabo havia se metido.

- Felicíssimo, que embrulhada meu rapaz!! – disse Raimundo da porta da sela.

Felicíssimo Patriota, prostrado num catre, levantou-se. Os olhos fundos, de mal alimentado, vermelhos de tanto chorar. O fardamento em farrapos, cabelos longos, barba espessa. Chegou-se a grade rogando:

- Comandante, fui injustiçado! Ajude pela misericórdia Divina!

- Consta nos autos que é um monarquista! Que insultou a república e seu governo. Sua situação não é nada boa.

- Comandante, creia-me, não foi nada disso! Apenas queria minha promoção. Disseram-me que era impossível pois as promoções do império não valiam para a república. Eu teria que esperar. Mas tenho comigo o documento...

- Felicíssimo, temos que nos submeter a república, se a ordem era esperar, que esperasse. Por que insultou o Marechal?

- Que Marechal? Não insultei Marechal algum. Sabe o senhor que sempre observei a hierarquia.

- Consta aqui que insultou o Marechal Deodoro da Fonseca e que deu viva ao imperador no momento de sua prisão.

- Há muita mentira nisso comandante. Não ofendi ninguém, também não dei viva nenhum.

O comandante Raimundo olhou-o severamente nos olhos. Tinha por ele um sentimento paternal. Sabia que era um pobre diabo, lutando desde pequeno contra a marca indelével de ser mulato e bastardo, vivendo de favores e benesses, comendo as sobras, lambendo o chão e botas de seus superiores. Era para essa gente que a República deveria ser uma redenção. Perguntou em tom sugestivo;

- Felicíssimo, diga-me, és um republicano?

Felicíssimo ponderou alguns instantes sobre o tom enigmático da voz e das palavras do comandante.

- Posso ser... – disse abaixando a cabeça com voz de cordeiro manso, apesar de desconhecer por completo o que significasse ser republicano.

O comandante Raimundo esfregou as mãos e tentou tranquilizá-lo.

- Então fique calmo. Espere um pouco mais. Verei o que posso fazer. Até lá rapaz, dê vivas à república todos os dias!

Felicíssimo Patriota ensaiou uma continência. O comandante o seguiu num movimento menos entusiasmado, virou-se e saiu. Uma semana depois, Felicíssimo era posto em liberdade; foi mandado para casa para que se barbeasse, tomasse um bom banho, se alimentasse corretamente e se apresentasse no dia seguinte ao serviço como se nada houvesse acontecido. No dia seguinte apresentou-se e foi ter com o comandante. Este o esperava em seu gabinete com um ar sério e um envelope sem timbre na mão. Ao entrar, Felicíssimo postou-se ao lado da mesa e bateu uma veemente continência. O comandante com desdém:

- Descansar! Sente-se Felicíssimo! Tome, leia! Foi o melhor que pude fazer.

Felicíssimo tomou o envelope trêmulo. Imaginou que o documento fazia, finalmente referência a sua promoção a cabo. Um brilho surpreendente tomou todo o seu olhar, sua respiração alterou-se por completo. Leu de um só fôlego o documento e a cada linha seu olhar se transformava em uma mistura de estarrecimento, surpresa e ódio. O documento dizia que o seu caso fora avaliado pela Junta Especial de Promoções Militares do Governo Provisório da República. Como estivera envolvido em um incidente claramente de apologia à monarquia não mais em voga em nosso país, bem como um caso de insubordinação ao suboficial intendente, não poderiam dar andamento ao seu processo de graduação a cabo. Dizia ainda que seu caso era sumariamente passível de expulsão das forças, processo e julgamento por um tribunal militar. No entanto, por interseção de seu comandante Capitão Raimundo Fidalgo Real, que fez um relato de seu esmero quando em serviço e que confessou-se arrependido do ocorrido jurando ainda em cela fidelidade a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil, esta Junta concedia-lhe o perdão e o direito de permanecer a serviço do Exercito Republicano como praça na graduação de soldado raso.

Felicíssimo quase teve uma síncope. Olhou severamente para o comandante. Quis gritar, xingar a república, governo provisório e o escambau. Porém conteve-se. Lágrimas escorriam-lhe dos olhos. O rosto vermelho indicava a raiva que continha naquele momento. O comandante Raimundo indagou debochado:

- Viva à República sol-da-do Felicíssimo?

- Viva comandante! Viva a república de m... – hesitou um instante – nossa grande nação!

Bateu continência e desapareceu. Foi a única vez na vida que se viu Felicíssimo Patriota dar um viva a república em todos os anos de serviço militar. Nunca entendeu o que fosse uma república, nunca entenderia e nunca quereria entender.