quinta-feira, 20 de novembro de 2014

UMA PORTA PARA GARGANTA

Em todos esses anos era a primeira vez que via a porta da gaiola aberta. O velho homem de barba, jazia no chão, aparentemente consumido por um mal agudo e fulminante. Garganta, cantou os dobrados mais lindos que conhecia e que encantavam o velho homem de barba; usou todas as forças de suas pequenas mas potentes cordas vocais. Não adiantava, o velho permanecia inerte, braços jogados, olhos sem vida, boca aberta, no chão. Garganta confuso, tremia de medo, e de ansiedade sem saber qual seria o próximo passo. A porta da gaiola aberta, como a lhe devolver a pergunta: o que fazer agora?

Recordava vivamente o dia em que fora jogado naquela gaiola. O desespero na luta contra aquelas grades, as dores em suas asas, as feridas, a inexorável perda da liberdade e do voo desbordado em qualquer direção que a brisa apontasse. Havia sido capturado numa manhã de sol enquanto caçava o seu café da manhã; de súbito algo crepitou sob seus pequenos pés e um forte estalo roncou sobre sua cabeça e a luz do dia se desfez. Era um alçapão de caçar passarinhos. Lutou com todas as forças que tinha chocando o peso do seu corpo contra a tampa. Inútil. Foi levado num espaço escuro de uma grande sacola para onde jamais soube onde realmente era. Era viver no não localizado dos lugares; sem o riacho em que se banhava e bebia água, sem as árvores e galhos familiares, sem o pio rotineiro de seus rivais de cantoria e sem as noites de lua dormidas nas ramagens das árvores. Colocado na gaiola por aquele homem de barba, que naquele tempo, nem era de todo branca, ainda lutou bravamente sempre que adivinhava uma brecha por onde pudesse fugir. Mas sempre eram erros de cálculo e por onde pensava que podia fugir encontrava o duro de uma grade ou o firme de uma porta.

A tristeza trabalhou duro nos seus primeiros dias engaiolado. Cantava de saudade, choroso, longo e alto como que para chamar seus irmãos e mesmo seus rivais, cantava para chamar o sol, para chamar o riacho, para chamar as flores; mas eles não vinham. Toda aquela cantoria, triste e pesarosa parecia ainda mais agradar o homem de barba, que trazia, talvez por isso, todas as manhãs pequenos pedaços de fruta que ele fixava nas grades da gaiola, e que um pouco, reduziam o pesar de Garganta com os cheiros e gostos que lembravam a liberdade.

Aquele velho homem de barba, por motivos que desconhecia, sempre que se dirigia a ele, chamava-lhe de Garganta. Garganta pra lá, Garganta pra cá. Tal foi o uso, que passou a atender a esse estranho chamado. Ficou sendo seu nome. Acreditava que fosse coisa de pássaro engaiolado e atendia com pequenos piados e com seus breves olhares intrigantes. Nem sempre foi assim. No começo, tinha ojeriza àquele homem de aspecto rude, grandes sandálias de couro, uma velha bermuda com muitos bolsos que parecia estar sempre suja, óculos de lentes grossas e a barba, grande, espessa e a cada dia que passava cada vez mais branca. Sempre que o corpulento homem de barba se aproximava da gaiola, Garganta tinha ímpetos de bicá-lo, e o fazia, sempre que podia. Mas suas mais agressivas bicadas pareciam sequer arranhá-lo. Soltava um sorriso debochado, resmungava algo e nada acontecia. Garganta não conseguia abater seu algoz.

O tempo corrompe até aos selvagens. Garganta foi perdendo a raiva por aquele homem que vinha todas as manhãs com agrados, frutas e outros mimos. Inclusive passeios matinais em que o corpulento homem carregava a gaiola pelos arredores de onde morava e Garganta podia sentir o gostinho do que fora ser livre, sentindo novos cheiros, vendo novas paisagens, ouvindo e vendo outros pássaros, alguns até mesmo engaiolados como ele. Tudo isso foi amassando seu ímpeto de liberdade, e seus cantos, que antes eram de lamento, passaram a se mesclar com um sentimento que parecia ser de gratidão. No entanto, um pequeno amargo de contrariedade repicava em suas notas, uma ponta de angústia alfinetava seu coração, que apesar de bem alimentado, abrigado do frio, calor, predadores e doenças, sentia e sabia que seu verdadeiro lugar não era ali.

Passava dias inteiros sem ser tomado por aquele sentimento de saudade do voo livre, do vento em seu bico, da textura dos galhos das árvores sob seus pés. Mas invariavelmente, sempre que via uma brecha na gaiola, a porta um pouco mais aberta era tomado de um desejo incontrolável de sair voando por aí e abandonar o cativeiro. Por vezes, isso o entristecia por muitos dias, e era então quando mais belo cantava deixando o velho homem de barba branca embevecido ao pé de sua gaiola por horas inteiras. Nesses dias, trazia as frutas mais frescas e saborosas em retribuição ao canto tão belo do pássaro enjaulado.

Essa relação dual e ambígua, de dependência, admiração, ódio, ressentimento e angústia por conta da liberdade há muito suprimida chegara ao ápice e desfecho no instante que, como em todas manhãs, o velho homem de barba muito branca viera trazer a Garganta a porção diária de comida, fruta e água. No momento em que abriu a pequena porta da gaiola para depositar a comida, um tremor fulminante congelou seu grande corpo. Como se fosse um imenso monólito desequilibrado, despencou num enorme baque espalhando todo o alpiste pelo chão.

Atônito, Garganta olhava para o grande homem inerte no solo, em seguida para porta escancarada da gaiola; repetidas vezes alternou a direção do olhar. Em seguida desbaratou um canto de pavor como que para acordar o grande homem. Inútil, ele não se mexia. Num átimo, estacou o canto. A porta da gaiola estava aberta! Seu momento por anos esperado. O voo livre, incerto, no grande vazio celeste. Tendo o horizonte por limite. Um silêncio solene se fez. Paradoxalmente, Garganta hesitou. Nunca mais os passeios matinais, as frutas mais frescas pela manhã, e sobretudo, o olhar embevecido do grande homem de barba branca. Um frio arrepiante percorreu a pequena espinha de Garganta: a incerteza do voo, os dias de fome, os dias de frio, o riacho cercado de predadores, era para esse mundo que voltava? Uma gritaria, choro, vozes desesperadas. Os filhos do homem de barba branca. Garganta tonto, congelado, como se algo fixasse seus pés no poleiro... a porta aberta... num movimento autômato, no meio da confusão por encontrar seu pai caído, provavelmente infartado, um dos filhos do velho homem bateu a mão rapidamente e selou para sempre a porta do voo livre de Garganta. A gaiola se fechou.

Garganta, nunca mais cantou. Não de tristeza pela morte do homem; não por que fosse pior tratado pelos filhos do homem. Calou-se para sempre petrificado de horror pelas correntes invisíveis que a certeza havia construído.