domingo, 20 de novembro de 2011

UM NOVO MOTE


O fogo
sem afago
também se afoga

num mar
de amar
também se armar

de escudo
quiçá escada
também te esconda

do medo
a moda
talvez o mote

dessa curta
entrecortada
triste canção.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

RODA PÉ


Não venha depois queixar
a página virada

na valsa,
seu grande salão rutilante
animados
as taças vão e vem
no acre ácido
do etílico
as vezes doce

amarela numa estante fria
e já a traça começa a digeri-lo

do braço
ao laço
que te abarca
num rodopio
e o brilho
cintilante
do brocado

da amarradura encadernada
despencam páginas
como escamas
como lascas
e cada verso
é já um pretérito

o fulgor das luzes
seu bouquet esperado
um último aval
anunciado
um brinde
três mil salvas
e núpcias

no rodapé
letras miúdas
avisam amiúde
dos detalhes perdidos
do desconhecido
as vezes ignorado
revelação
num pé de página.
Não leia a orelha.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

MATRIMÔNIO


O mutável e o imutável
de mãos dadas
caminhando
trocam suas estranhas carícias

na prateleira mais alta da estante
empoeirado
um velho livro observa
do outro lado da rua
do outro lado do mundo
umas tantas possibilidades
abraçadas
a umas tantas passibilidades

soco pra te embalar
facada que te causa cócegas
riso enquanto o outro sangra

de mãos dadas
caminhando
mudando
perpetuando

um bêbado deitado na calçada
contempla
o impraticável casal

um sol esquisito
preguiçoso
frio
emoldura
enquanto uma chuva quente
cai para molhar os amantes
e exasperar o bêbado.

domingo, 6 de novembro de 2011

A LONGA VIGÍLIA DE GUILHERMINA


Como fazia todas as manhãs nos últimos sessenta anos Guilhermina Prompta Espera acordara às quatro da manhã e se punha de vigília a espera de um visitante que nunca chegou. Preparava metodicamente, todos os dias, uma trouxa de roupas que há muito não serviam no seu idoso corpo e cujo lençol que as envolvia já puído e bastante furado, quase se desfazia em suas enrugadas mãos.

Às vésperas de completar oitenta anos, vivia solitária no que restou da antiga sede da fazenda de seu pai. Terceira filha e única mulher de uma família de cinco irmãos; herdeira da fazenda Alvorecer, fora criada como uma princesa e alimentou seus sonhos de princesa até a tarde de um verão remoto em que conhecera Manuelino Volta Grande que viera até a sede da fazenda negociar sacas de café. Ao divisar aquele homem altivo, chapéu de abas longas, botas bem engraxadas e esporas reluzentes, alto, com um queixo saliente, barba por fazer e de olhar penetrante que apeava de um belo cavalo negro, Guilhermina experimentou uma pontada no coração que entenderia, algum tempo depois, o significado do amor à primeira vista.

Fora criada para um casamento com algum figurão do café que pudesse chegar à altura da fortuna de seu pai Ignácio Mezza Prompta Espera. Recebeu a educação básica, aulas de costura e música e era a fina flor das moças daquela região cafeeira. Seu pai já havia rejeitado os mais variados pretendentes: filhos de fazendeiros menores da região, capitalistas desocupados da capital, doutores e uns tantos profissionais liberais, engenheiros da estrada de ferro e até um charlatão falso fazendeiro de Goiás a quem Ignácio mandou dar uma surra e ferrar como a um animal ao descobrir que era um trambiqueiro fugitivo das autoridades.

Manuelino Volta Grande era um atravessador de café que negociava com os fazendeiros e se encarregava de enviar o café para as companhias exportadoras no litoral. Sua família já estava nesse ramo há três gerações e teve a oportunidade de negociar com Prompta Espera em função de um desentendimento deste com seu negociador anterior.

Como o marido Ignácio não estava em casa, Dona Leopolda Faria de Prompta Espera pediu a filha Guilhermina que fizesse sala ao visitante enquanto mandava um empregado em busca de seu pai. Educado, Manuelino não notou de primeiro, a bela jovem que o recebera na soleira da porta; ela tomou-lhe o chapéu para que o guardasse e convidou-lhe a entrar e sentar enquanto aguardava. Ele não tinha fixado o olhar em nada ainda; vinha na cabeça com os argumentos e condições para a negociação com o potencial novo cliente.

Um pouco ansioso, mas controlado, sentado no sofá da sala Manuelino começou a observar o ambiente, o luxo dos móveis, a imponência do casarão, o piso de tábuas muito polidas que pareciam de um salão de festas. Tão concentrado em suas observações e na negociação que estava para iniciar, levou um pequeno susto quando Guilhermina, muito nervosa e com o coração palpitante, por educação, ofereceu-lhe café.

Quando o mundo voltou a girar e Manuelino finalmente voltou a respirar, tal o golpe que recebera, pode divisar um par de lindos olhos azuis e um sorriso divinal a lhe oferecer alguma coisa que ele não havia entendido o que era. Aceitou sem saber ainda do que se tratava e seguiu com os olhos e respiração os passos da moça que entrou em direção a cozinha para buscar o café. Suas idéias se embaralharam, o preço da saca transportada, custos de estocagem, datas, prazos. Tudo o que vinha pensando se misturou e se perdeu nas retinas azuis daquela moça e seus argumentos foram arrastados pelo rastro de sua saia em direção da cozinha.

No instante em que a Guilhermina retornou a sala, Manuelino não teve tempo em dirigir-lhe a palavra, pois assomava à porta o senhor Ignácio Prompta Espera. Apresentaram-se mesmo sabendo-se um de quem se tratava o outro e sentaram-se para negociar. Manuelino teve de fazer um esforço imenso para retomar a linha de raciocínio antes de por os olhos em Guilhermina; Ignácio ao perceber o nervosismo do rapaz, dono de um ego que mal cabia em sua constituição de pouco mais de um metro e sessenta, entendeu que era natural que um jovem como aquele se intimidasse diante de sua importante figura. Certa experiência e traquejo, apesar da pouca idade, fizeram com que Manuelino retomasse as rédeas de seus sentidos que de quando em vez perscrutava o cômodo em busca de Guilhermina que havia se retirado a fim de que pudessem tratar dos negócios. Mais por falta de opção que por achar as condições favoráveis, Ignácio fechou o negócio e Manuelino se comprometeu em estar presente na fazenda, a quinze dias dali, quando a primeira tropa de mulas conduziria a primeira carga sob sua responsabilidade.

Ao sair e montar novamente Manuelino percebeu e retribuiu o olhar caloroso que Guilhermina lhe dirigiu da janela de seu quarto. Acenou-lhe com o chapéu e seguiu pela estrada já contando os dias para retornar àquela fazenda.

No dia em que um pretinho chegou sorrateiramente à soleira da porta, Guilhermina, que estava absorvida na conclusão de um bordado, assustou-se ao divisar aquela figura que parecia ter estado bastante tempo a observando até que fosse percebido. Ela quase ralhando com o menino perguntou o que ele queria. Ele em resposta aproximou-se e estendeu a mão com um pequeno envelope dobrado que já começava a amarrotar pelo descuido do menino. Entregou a Guilhermina a encomenda e desapareceu pela porta da frente chispando pela escada que conduzia ao pátio principal da fazenda. Guilhermina inutilmente correu até a varanda no afã de saber para onde fora o mensageiro. O pretinho desaparecera nos matos.

Seu susto e confusão desapareceram quando desdobrou o envelope. Era uma carta de Manuelino. Sua surpresa converteu-se rapidamente em felicidade e ela embaralhou a carta em suas peças de costura que jaziam num pequeno cesto e correu para seu quarto para poder ler, longe dos olhos de todos, seu primeiro relicário de paixão que guardaria por toda a vida.

Antes que Manuelino conduzindo a sua tropa apontasse na porteira da fazenda para comboiar o café contratado com seu pai, Guilhermina receberia mais duas cartas recheadas de promessas e juras apaixonadas; numa delas garantia que falaria a Dom Ignácio a fim de pedir autorização para cortejá-la. Não podia se conter, e mesmo chegou a furar um dedo manuseando uma agulha, quando, apoiada na janela, divisou a figura de Manuelino a frente de sua tropa com aquele mesmo ar altivo do dia em que pôs os olhos nele pela primeira vez.

Enquanto os responsáveis pelo carregamento na tropa de mulas se dirigiram para os armazéns, Manuelino apeou na sede e subiu as escadas perguntando a Guilhermina, que jazia estática em uma janela, onde podia encontrar seu pai. Absorvida pela visão do amado demorou a sair do transe em que estava mergulhada e se surpreendeu com tamanha resolução e objetividade do homem tão romântico, sonhador e doce que seu ideário havia construído em função das cartas recebidas. Esteve quase indignada por ele não lhe dar a mínima atenção. Indicado por Guilhermina foi ter com Dom Ignácio no amplo e luxuoso escritório da fazenda, onde mergulhado em papéis, o introspectivo fazendeiro transformava pés de café em ouro.

Dom Ignácio, como também era chamado na região, estranhou quando o negociante de café assomou a porta do escritório pedindo autorização para lhe falar. Não entendia os motivos que o trazia alí uma vez que todos os detalhes sobre o carregamento de café e os pagamentos foram acertados em seu encontro anterior e no mais, detalhes menores poderiam ser acertados diretamente como os capatazes da fazenda. No entanto, foi cordial na medida em que sua surpresa e enfado permitiram e o convidou para entrar e sentar-se. Ignácio estranhou ainda mais no momento em que Manuelino pediu a presença de sua filha Guilhermina, pois o que iria falar interessava aos dois. Atônito, sem entender, mas começando por ficar curioso, acedeu ao pedido do visitante e mandou chamar a filha.

Dono de uma objetividade e de uma praticidade que surpreenderam o próprio Ignácio, em poucas palavras Manuelino resumiu o caso dizendo que se enamorara por sua filha e pediu permissão para lhe fazer a corte. Dom Ignácio permaneceu calado por um longo tempo em que Guilhermina sentia o coração dar fortes pancadas no peito e as pernas bambear ao que discretamente, parada do lado do pai apoiou-se no espaldar da cadeira em que ele estava sentado. Ela olhava para Manuelino, impassível, aparentando uma calma apenas traída por sua perna que não parava de agitar na cadeira. Ao fim de algum tempo Dom Ignácio proferiu o que aos ouvidos de Guilhermina soou como uma sentença. Disse o fazendeiro, com uma educação que surpreendeu a filha, que não poderia consentir no namoro, pois achava que os dois ainda eram muito jovens e não estavam na idade certa para casar. Ademais, argumentou que sua filha fora criada com todo o luxo e temia, dizendo não querer diminuir Manuelino, mas temia que essa riqueza lhe faltasse e comprometesse sua felicidade.

Manuelino pensou ainda em contra-argumentar, dizendo que era homem de algumas posses, que não era pobre, e que era muito promissor em sua atividade, porém, com sua sagacidade de negociante, conheceu no olhar do velho fazendeiro que não havia espaço para qualquer tentativa de convencê-lo do contrário. Agradeceu a oportunidade e levantou-se no intento de ir embora. Antes, porém, dirigiu um veemente olhar para Guilhermina que pra ela pareceu mais enigmático que apaixonado ou entristecido, em seguida, saiu. Sozinha com o pai, Guilhermina não ousou dizer palavra e saiu do escritório arrasada sentindo que iria sufocar de paixão e tristeza. Correu para seu quarto e meteu-se aos prantos entre lençóis e travesseiros. Não conseguia entender os por quês de seu pai e mais ainda a aparente passividade com que Manuelino aceitou a recusa. Todas as juras de amor que lhe remetia nas cartas lhe pareceram não passar de uma grande mentira e era bem provável que não fosse ele quem as escrevesse.

Meia hora depois, ainda mergulhada em seus lençóis de donzela, olhos inchados pelo profundo pranto, Guilhermina ouviu sutis batidas na porta do seu quarto. Se recompôs da melhor maneira que podia. Ao entreabrir a porta, o mesmo pretinho que havia trazido as cartas anteriores empunhava tremulamente um bilhete que ela tomou-lhe fechando em seguida a porta sem sequer agradecê-lo. O bilhete pedia que o esperasse dali a três dias, antes do sol nascer, ele viria buscá-la para que fugissem. Ao final, as iniciais que a tranqüilizaram e diluíram dúvidas e medos: MVG – Manuelino Volta Grande.

Guilhermina Prompta Espera ainda muito nervosa e ansiosa, não titubeou um só instante, inspirada pela coragem do amado, separou umas poucas roupas, alguns outros pequenos pertences e embalou tudo em um lençol e se pôs a esperar.

Pelas contas que eram dela, na noite véspera de sua fuga, Guilhermina não dormiu, ansiosa e afoita que estava. Sua mãe estranhou quando ela, ao ir lhe tomar a benção antes de dormir, lhe surpreendeu com um demorado e carinhoso abraço. Guilhermina se recolheu numa longa vigília insone, rolando várias vezes na cama até que os primeiros raios de sol vieram encontrá-la sentada na cama abraçada a trouxa que preparara carinhosamente. Um tanto quanto confusa, procurou sem sucesso o bilhete que Manuelino havia lhe enviado marcando a fuga para três dias do dia de seu pedido infrutífero. Na noite seguinte repetiu sua vigília na esperança vã que tivesse se confundido com o bilhete na contagem dos dias. Manuelino novamente não apareceu. Ao fim de uma semana sendo apanhada todas as manhãs pelos raios fugidios de sol que atravessavam a vidraça da janela de seu centenário quarto Guilhermina não compreendia e teve a certeza de que não havia se confundido. Algo havia acontecido ao seu amado. Essa certeza a impulsionou a um novo fôlego de longas esperas em madrugadas intermináveis. Sabia que cedo ou tarde Manuelino apareceria. A essa altura não perdia as noites de sono, mas sempre antes do sol nascer, antes do cantar dos galos já estava acordada com sua trouxa de roupa sempre a mão. Compreendeu a gravidade do desaparecimento do dono do seu coração nos meses seguintes quando outros comerciantes vieram negociar o café de seu pai e esse acontecimento fez com que ela aprofundasse o processo de apagamento que sofreria ao longo da vida. Não obstante a isso, mantinha uma perseverança contraditória acordando todas as madrugadas e insensatamente esperando Manuelino por anos que não viu passar.

Guilhermina foi se tornando cada vez mais taciturna, calada e introspectiva. Não lhe apeteciam os pretendentes que lhe apresentavam e jamais lhes dirigia um único olhar. Poucas vezes saia do quarto, salvo para fazer as poucas refeições que foram tornando-se cada vez mais raras. Já não costurava, nem fazia seus famosos bordados e sua vida converteu-se numa permanente vigília noite e dia. Nunca, jamais, sob aspecto algum se ausentava da fazenda; não fazia passeios nem viagens, não ia a festas e em todos esses anos sequer uma única vez dormiu fora de seus aposentos de donzela. Quando seu irmão mais velho se casou não atendeu ao convite e mesmo sob as ameaças de seu pai não compareceu a cerimônia que foi realizada numa pequena igreja da cidade em que toda a sociedade local estava presente. Seu pai decidiu que todos os casamentos dos demais filhos fossem realizados na fazenda e apenas por isso não foi definitivamente excluída de uma vida social já precária.

Anos depois o seu profundo ostracismo e sua longa vigília só foram abalados pela repentina morte do seu pai. Dom Ignácio voltando de uma visita aos cafezais de um dos extremos da fazenda sofreu uma grave queda do cavalo e não resistiu muitas horas em seu refinado leito de barão enquanto aguardava um médico que chegou tardiamente. Foi a primeira vez em que Guilhermina saiu de seu recolhimento e rapidamente prontificou-se a ajudar a mãe no preparo do corpo para o sepultamento. Todos estranharam que mesmo triste como sempre era, talvez sacudida pela perda do pai, Guilhermina abandonou seu mundo e mesmo também sentindo o luto, consternada com o sofrimento de sua mãe transformou-se num ser prático e objetivo nessa hora tão extrema.  Decidiu com os irmãos questões relativas ao enterro, horário, missa, providências para o velório e também se prontificou a dar banho e vestir seu finado pai. No instante em que separava roupas para vestir o velho Ignácio, Guilhermina tomou um forte golpe do qual jamais se recuperaria. Dentro de um velho paletó, uma ponta de papel amarelado lhe chamou a atenção e mesmo aturdida pela morte do pai não reteve a curiosidade e puxou do bolso o pequeno pedaço de papel. Não conteve um grito mesclado de ódio e surpresa que foi ouvido por todos na casa que a essa altura já se enchia de gente que viera prestar suas últimas homenagens ao velho fazendeiro. O pequeno pedaço de papel era o antigo bilhete de Manuelino onde marcava a fuga. Abandonou o que estava fazendo e o corpo do velho teve de ser vestido por uma antiga criada. Guilhermina trancou-se no quarto de onde saiu uma semana depois sem explicar a ninguém sua fuga intempestiva e sua clausura que não foi quebrada nem mesmo pelos rogos de sua mãe.

Certa do envolvimento do seu pai no desaparecimento de Manuelino, Guilhermina não compareceu a missa de sétimo dia e não voltou a tocar em seu nome nos muitos anos que se seguiriam. Quando lembravam do velho Ignácio em alguma conversa em que estivesse presente imediatamente se retirava até que o assunto mudasse de rumo. Jamais perdoou o pai.

Com o passar dos anos Guilhermina foi se tornando uma pessoa mais amena e menos casmurra. Participava do dia a dia da casa servindo de boa companhia a sua mãe que envelhecia a olhos vistos. Depois da morte do pai os quatro irmãos dividiram rapidamente a fortuna, cabendo a ela e a mãe a sede da fazenda e uma pequena faixa de terra contígua ao antigo casarão. Pouco afeitos ao trabalho e com o declínio da cultura do café a fortuna que estava na família havia pelo menos quatro gerações fora dilapidada em poucos anos e seus irmãos passaram a viver de parcas aposentadorias.

Ainda com uma leveza no trato e praticamente eliminando as longas horas de clausura para passar intermináveis tardes com sua mãe, retomando as costuras e contemplando os belos ares rurais, podia-se claramente notar uma tênue tristeza no olhar de Guilhermina, como se a lacuna onde sua vida havia sido jogada não houvesse forma de ser preenchida. Seus hábitos também não mudaram, continuava a acordar todas as madrugadas e permanecer em vigília mesmo sem qualquer indicio de que seu amado voltaria. Também não se ausentava da fazenda fosse por qualquer motivo.

Quando sua mãe morreu, depois que providenciou um funeral no que sobrou da antiga fazenda e onde todos os seus irmãos e sobrinhos compareceram, Guilhermina permaneceu só na velha casa que aos poucos também perdia a imponência de outrora. Muitos cômodos tinham sido demolidos, pois, inservíveis, inabitados e sem manutenção, geravam mais trabalho que utilidade para a solitária moradora. A única pessoa com quem contava para limpezas e pequenos consertos nos cômodos que resistiam ao tempo era o preto Antônio, o mesmo pretinho que lhe serviu de mensageiro das furtivas cartas de Manuelino. Esporadicamente recebia visitas dos sobrinhos que não passavam mais que algumas horas no sítio em que a fazenda havia se transformado e a tratavam como meio louca, pois sabiam do seu hábito de acordar todas as madrugadas antes do sol nascer e permanecer longa horas abraçada a uma velha trouxa de roupa a espera de algo que não sabiam o que era. Nunca mais vira nenhum dos irmãos e tampouco sairia da fazenda para visitá-los.

E então, nas vésperas de completar oitenta anos, como fazia todas as manhãs, Guilhermina acordara às quatro da manhã, preparou sua antiga trouxa de trapos puídos e repetiu mais uma vez sua longa vigília. No instante em que os primeiros raios de sol principiaram a atravessar as frestas da antiga janela ouviu um pequeno estalo de algo batendo na janela. Não deu atenção e quando iria fazer suas orações para em seguida levantar e preparar o café, um novo estalo da janela a convenceu que alguém lhe chamava do lado de fora. Apesar de ainda muito cedo, imaginou que fosse o preto Antônio sem atinar o motivo que o traria alí àquela hora. Quando saia do quarto para atender a porta Guilhermina ainda ouviu um último estalo seco retinir na janela como uma leve pedrada.

Guilhermina Prompta Espera abriu a porta da frente e ficou aturdida com uma surpreendente visão. Um senhor com certo ar altivo, chapéu de abas longas, botas muito enceradas e uma branca barba por fazer, assomava a porta. Todos aqueles anos não foram suficientes para que num átimo Guilhermina não reconhecesse Manuelino Volta Grande, que apesar dos anos todos demonstrados em seu caminhar lento, ainda conservava a mesma força no olhar decidido. Não trocaram palavra, Manuelino apenas estendeu a mão e Guilhermina deixou-se levar pelo homem que esperou embalada pela certeza que aquele instante confirmava. Seguiram caminhando pela estrada enquanto a manhã e os primeiros raios de sol os embalavam naquela fuga para realizar em tempo seu amor que a longa vigília de Guilhermina jamais apagou.