sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O MÁGICO CARIBENHO

No final do inverno ou início da primavera de 1996, não me recordo ao certo, tive o primeiro encontro mágico com o Mágico Gabriel García Márquez. Até então para mim ele era um total desconhecido. O encontro, infelizmente, longe de ser com o autor em carne e osso, foi com sua obra prima Cem anos de solidão. Nunca me recuperei deste imprevisível encontro. A partir dele, a literatura nacional e, sobretudo, a literatura universal, nunca mais teve o mesmo sabor. Sempre um travo ao final de cada livro, ao final de cada capítulo, aquela vírgula, aquele ponto e vírgula que deixava em suspense a respiração à espera de um algo mais que nunca chegaria.

Encontrei o livro na casa de um colega numa tarde de sábado. Era um desses exemplares baratos com uma capa dura de um azul escuro manchado, um acabamento interior grosseiro com as famosas ilustrações do artista Caribé no início de cada capítulo. Essa edição foi durante algum tempo facilmente encontrada em bancas de jornal. Seu principal atrativo era o preço. Peguei o livro e folheei-o sem interesse a princípio; não me recordo se li algum trecho ou não. Esse meu colega havia ganhado esse exemplar de presente de um tio seu jornalista. Ao fechar a capa encontrei a seguinte epígrafe, da qual jamais me esqueci: “Este livro, é a historia da América Latina, linda, real e cruel”. Essa simples epígrafe me atingiu feito um soco e naquele exato instante iniciei a leitura do livro; já na segunda página havia pedido o livro emprestado.

Sempre com minha leitura irregular, devo ter levado uns três meses para completá-la. E ao seu término não pude deixar de sentir uma grande tristeza e entendi que a literatura nunca mais seria a mesma pra mim.

O livro, de verdade, mesmo aos meus olhos de 18 anos, era a melhor expressão e tradução do que foi e ainda é a América Latina. Mesmo o Brasil, com seu idioma diferente e alguns elementos culturais distintos se descortina nesse livro fabuloso. É também um livro sobre a trágica história brasileira.

Aproximadamente 30 anos depois que Gabriel García Márquez havia concluído sua obra prima, eu mergulhava inocentemente em seu universo fantástico, repleto de figuras tão familiares, com histórias tão parecidas com a de qualquer sul-americano, histórias mesmo que em alguns pontos lembravam a minha própria família.

Não obstante ser uma obra extremamente confessional e altamente biográfica, Gabriel García Márquez conseguiu resolver e reconstruir seus conflitos e angústias numa história genuinamente original, cheia de emoção, provocante e que nos inspira uma série de questionamentos sobre a história de nosso continente. Vestindo a psique talvez de um Melquíades, com suas “manos de gorrión”, García Márquez com uma inspiração quase psicográfica, tomado por uma disciplina arrebatadora de quem escrevia, por 18 meses ininterruptos, o livro da sua vida, traz a tona uma revelação: seja na Colômbia, Peru, Paraguai ou Brasil são muitas as famílias mergulhadas na dureza, pobreza, tragédia e alegria, que a despeito de todos os seus deslizes e problemas consegue construir uma trajetória de honra, ensinamento, amor e felicidade. É uma das mais belas histórias familiares de que me recordo. Se não a melhor. E sendo uma história familiar, vai muito além disso, convertendo-se num testemunho de todos paises colonizados da América, quiçá do mundo.

As técnicas, ou “truques”, os quais o próprio García Márquez utiliza como justificativa para minimizar suar própria obra, afirmando que o livro não passa de um amontoado deles, ao contrário, a enaltecem. A sua capacidade inventiva ou rememorativa, a habilidade em ordenar todas aquelas impressões num enredo narrado de uma maneira feroz intercalando, sobrepondo e emendando os episódios é, numa humilde síntese, a grande marca do romance.

É claro que no fenômeno ocorrido entre o meado e final dos anos 60, que ficou conhecido como boom latino-americano, Cem anos de solidão não flutua sozinho; mas é, sem dúvida, sua maior estrela. É também o romance que coroa a maturidade criativa do continente e o insere de forma definitiva no cenário da literatura mundial. Antes mesmo dos fatores econômicos com a onda neoliberal impulsionada pela globalização mostrar a força do continente a América Latina se imporia mundialmente por força de sua arte, carregada, de forma magistral nos braços do Mágico caribenho Gabito.

Então, diferentemente de qualquer lugar do planeta que é celebrizado e cantado por seus grandes feitos do passado e qualidades, essa epopéia latino-americana a celebriza justamente por desnudar de forma incondicional suas mazelas e por satirizá-las, e ainda assim reafirmando que a vida, repleta de injustiças e imperfeições, mesmo por isso, pode ser de qualquer forma feliz. Viva Cien años de soledad !!! Viva Gabriel García Márquez!!