domingo, 26 de setembro de 2010

O ENCHUVARADO


Ele acordou com o barulho da chuva batendo fortemente nas telhas. Não recordava que no dia anterior, no momento que se deitou, houvesse qualquer indício que fosse chover. Esticou preguiçosamente o braço para alcançar o despertador, queria ver a hora. Na sua mão não alcançou nada e levantou a cabeça para enxergar o criado-mudo. Para seu susto, não havia criado-mudo, não havia os armários, não havia quarto. Levantou num salto e perscrutou em busca de suas coisas familiares. Para seu desespero, não estava em sua casa. “Merda, fui seqüestrado!” Olhou pela janela. No lugar de seu quintal repleto de árvores e algumas flores murchas cercado pela murada, um deserto de tez alaranjada que se afogava debaixo de uma chuva diluvial. O barulho das grossas gotas no telhado era ensurdecedor. Ainda tonto e confuso assomou rapidamente a porta num instinto natural para fuga. Para sua surpresa a porta estava terrivelmente aberta.

Olhou aquela vastidão que se estendia por muitos quilômetros sem que sequer um tronco seco de árvore se levantasse para quebrar a monotonia da planície dominante. O chão era uma pasta laranja que sucumbia a torrente que despencava, um verdadeiro lodaçal de proporções latifundiárias.

— Que seqüestro de merda! Deixaram a porta aberta. Mas pra onde eu vou com esse temporal?

Ainda com essa última reflexão lançou-se no deserto de lama sem saber para onde iria, que direção iria tomar; tudo o que não queria era estar naquele lugar insólito. Com poucos metros de uma trôpega caminhada conheceu que não teria sucesso, suas pernas afundavam como se estivesse dentro de um imenso pote de geléia e não tinha sequer divisado se aquela imensidão de lama tinha limites. Decidiu retornar ao casebre que primeiramente supunha ser seu cativeiro. Ficou seriamente preocupado com a possibilidade de ser realmente vitima de um seqüestro. O que poderiam querer? O que tinha ele para oferecer?

Recolheu-se novamente ao interior do casebre completamente ensopado. Investigou o interior das quatro paredes buscando encontrar algum vestígio do ou dos seus seqüestradores. Achou curioso o fato da porta estar aberta e de não ter ficado amarrado nem ao menos vendado. Estava estarrecido. Não sabia como tinha vindo parar ali, como o haviam transportado, onde estava, se era perto ou longe de sua casa. A chuva oscilava entre pancadas mais fortes e chuvaradas mais constantes, no entanto, não cedia um só minuto. Parou na porta mais um instante e olhou para o céu. Um céu quase negro sem uma nesga do que pareceria um raio de sol. Entre todas as coisas estranhas que o cercavam havia mais essa, estava ilhado num deserto.

De relance viu que no fundo do cômodo, ao pé da cama, havia um armário antigo, com um aspecto pesado, desses armários que parecem herdados de nossas bisavós. Correu até ele, mas estava trancado. O peso da tranca era demais para suas mãos e desistiu de abri-lo. Sentou-se na cama e teve vontade de gritar, mas não gritou; teve vontade de chorar, mas não chorou, teve vontade de correr e não correu. Permaneceu em uma vigília, mudo, escutando os socos da torrente que despencava sobre o frágil telhado que mesmo da espessura de papelão não se rendia à chuva.

Aos poucos a escuridão foi tomando conta de todo o ambiente e o casebre mergulhou na penumbra de uma noite terrivelmente chuvosa. Por essa altura começaram os raios e trovões aos quais as pequenas vidraças da janela vibravam até quase o espatifamento tal a força do ar que deslocavam. Essa sinfonia de chuva e trovões e o espetáculo pirotécnico dos raios aliados ao estresse e ansiedade não deixaram que ele dormisse nessa primeira noite. Acordou diversas vezes sobressaltado, desorientado, acreditando que havia enfim despertado daquele pesadelo fantástico.

Percebeu aos poucos que a escuridão foi dando lugar a uma claridade opaca e úmida; um dia triste e cinzento havia nascido e levantou mais uma vez para contemplar a incessante chuva que caía. Mais uma vez, como faria ainda por muitos dias contemplou aquele horizonte escurecido e turvo atrás de um deserto de lama. Não entendia como podia ser e pela primeira vez duvidou que pudesse ter sido seqüestrado. Se nada se movia com vida por aquele lugar sinistro, como podiam ter chegado até ali carregando alguém que dormia? Era um pesadelo! O pesadelo mais real que já tivera. Ficou com o braço roxo, no afã que os beliscões o acordassem para o mundo real. Conseguiu apenas terríveis feridas no seu braço e mais dor para se somar a sua crescente angústia que o estava conduzindo a verdadeira loucura.

Passada uma semana inteira sob aquele temporal incessante, convenceu-se de fato que não se tratava de um seqüestro. Ou se fosse, o único objetivo seria o de matá-lo de fome ou ainda afogado, já que de sede parecia improvável que morresse. Água não faltava. O curioso é que não sentia fome, nem sede. Também não tinha vontade de ir ao banheiro; sua única vontade era desaparecer daquele casebre fantasmagórico perdido naquele deserto improvável. Olhou mais uma vez para o grande armário. Já tinha perdido a conta das vezes que tentara abrí-lo sem sucesso. Num acesso de raiva, passou a chutá-lo e sacudi-lo fortemente. Um barulho fino ressoou no chão e um pequeno brilho fulgurou no assoalho. Era uma chave que estivera todo o tempo na parte superior do armário e com as sacudidelas de agora viera ao chão. Ele mesmo não acreditou em mais esse absurdo e a chave permaneceu intocada ainda por um tempo.

Suas roupas haviam ficado sujas desde o dia em que tentara desesperadamente, debaixo da torrente, fugir daquele cativeiro. Eram peças endurecidas e tingidas do laranja-lama que era a única cor possível naquele mundo encharcado. Passou a mão pelo seu rosto, a barba havia crescido um pouco. Tentou ver seu reflexo em uma das vidraças da janela. Estava horrível, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e também tingido do mesmo laranja-lama de sua roupa. Através da vidraça, a chuva, sempre.

— Maldição! Não pode chover pra sempre!

Apanhou a chave no assoalho e decidiu conferir se era mesmo a do velho armário. A fechadura abriu com uma leveza de flor que desabrocha; nem mesmo a dobradiça emitiu o menor rangido. Dentro, estava repleto até a última prateleira de papéis. Todos cuidadosamente arrumados, empilhados com uma perfeição artística na forma, mais pareciam grandes blocos brancos que pilhas de papel. “Bem, vamos ver que palhaçada há nesses papéis.”, pensou. Folheou as cinco primeiras folhas e nenhuma palavra, nenhum rabisco. Pulou outras tantas e nada. Retirou duas pilhas inteiras, espalhou-as pela cama e não havia nenhuma com absolutamente nada escrito. Era um arquivo de papéis harmoniosamente arrumados com nada escrito neles.

— Que porcaria mais inútil! Querem mesmo que eu fique maluco.

Simplesmente não entendia nada. Como viera parar no único deserto do mundo inteiro onde não parava de chover; onde não havia um vizinho sequer numa distância de muitos quilômetros; nada que se movesse ou que lembrasse vida; preso num casebre minúsculo construído sem que imaginasse pra que fim; um armário trancado, guardando uma pilha de papéis inúteis; como não sentia fome, nem sede, como não sentia nada, a não ser uma angústia permanente que por varias vezes o sufocara. Ainda sem saber por que, recolheu todas as folhas e as trancou novamente no antigo armário, arrumando-as da melhor maneira que conseguiu. Ao terminar esse insensato trabalho mais uma noite chuvosa havia caído e a orquestra de raios e trovões havia recomeçado. Ia começar mais uma vigília. Não sabia quantos dias estava naquele estranho lugar e afinal sentia suas forças fraquejarem, sua frágil sanidade mental dava sinais que sucumbiria finalmente pois aquele turbilhão de bizarrices estava finalmente vencendo sua razão mantida viva com grande esforço naquele cenário inimaginável.

Sentou-se na cama. Então para sua surpresa, sentira sono pela primeira vez desde que acordara naquele catre horripilante. Deitou-se sem muita convicção e dormiu, profundamente em muitos dias.

O silencio dominou o ambiente. De súbito, ele acordou. Havia fantasticamente parado de chover. Buscou a luz e pela claridade havia um esplendoroso dia de sol lá fora. Pássaros cantavam e nesse momento sentiu uma lágrima encharcar-lhe os olhos. Pulou da cama num só golpe e se viu, pra sua felicidade, de novo dentro de seu familiar quarto. Correu na janela e divisou as árvores frutíferas do quintal, as flores empoeiradas, a mesma murada desbotada. Estava em casa. Tudo não passara de um pesadelo. Aquele lugar insano onde estivera por dias inteiros fora um pesadelo. Sentia um alívio em seu coração, uma palpitação crescente que se converteu num grito absurdo de felicidade que foi ouvido por muitos quarteirões. Correu para o espelho. Estarrecido, viu sua barba crescida, o braço roxamente machucado pelos beliscões, seu cabelo desgrenhado e sujo, tal qual suas roupas, sujas do mesmo laranja-lama daquele mundo absurdo onde realmente, sem saber como e por que, estivera enclausurado. Outro grito, dessa vez terrível, medonho, foi ouvido por muitos quarteirões.

2 comentários:

Daiane Oliveira disse...

Tô sem palavras para esse conto.
Gostei muito!

lu disse...

Parabéns!! O conto é incrivel!!