terça-feira, 27 de junho de 2017

O MUNDO NO MEIO DO SERTÃO


Não saberei precisar, mas meu primeiro contato com Guimarães Rosa, muito provavelmente, foi pelos idos de 1995 ou 1996. E foi justamente com sua obra magna Grande Sertão: veredas. Não tive sucesso na leitura. Eu estava obcecado por literatura brasileira e estava em busca de autores nacionais no afã de engrossar meu parco conhecimento de suas obras. Topei com o volume na biblioteca da escola e tomei o livro de empréstimo. O livro, tinha como capa uma fotografia em preto e branco de uma vereda sertaneja com suas barrancas pedregosas, sobreposta à foto, a silhueta de um jagunço em vermelho, tendo, inscrita nessa figura dois chifres em preto com os dizeres ”o diabo na rua no meio do redemoinho”. Ao chegar em casa, dei com a cara na  parede. O livro era terrivelmente ilegível. Corpulento, de muitas páginas, e para meu terror juvenil, não haviam capítulos para que eu pudesse dividir e fazer pausas na leitura. Desisti no segundo dia. Não compreendi nada das páginas iniciais, e na minha mais absurda ignorância, fiquei me perguntando como alguém tinha coragem de publicar aquilo. Tolice da juventude, queiram perdoar.

Passado um tempo, novo encontro, agora com dois de seus mais famosos contos: A terceira margem do rio e A hora e a vez de Augusto Matraga. O primeiro deles através da internet e o segundo, desenterrado de uma velha e abandonada coletânea de contos que eu tinha. Tais contos, lidos e relidos, funcionaram como base para que eu desvendasse uma forma de ler Guimarães Rosa, era como se eu tivesse achado a base de sua criptografia. Não digo aqui desvendar, no sentido de compreender, na exata plenitude os escritos do autor, críticas e mensagens que possa ter embutido em suas “estórias”. Digo, que a partir desses dois contos, a leitura da obra de Guimarães Rosa, para mim, se tornou possível, passado o primeiro choque sofrido anos antes com aquele abrupto encontro com Grande Sertões.

Me apaixonei por esses dois contos. Falavam dos sertões, da gente valente, brava, forte, tímida, astuta, sabida, humilde, trabalhadeira, num linguajar todo próprio que dava saudade daquela gente e daquela terra mesmo sendo fruto da ficção. Esses dois contos reabilitaram a figura de João Guimarães Rosa ao panteão de autores que gostaria de ler. Recorrentemente, buscava trechos de seus romances em livros sobre literatura, desses que usamos no ensino médio. E fui cada vez mais gostando, assim, no “ramerrão”, como diria o próprio João.

Passado mais um tempo, por volta de 2006, ganhei, uma edição de Grande Sertão: veredas. Assim, sem muito preparo, me aventurei em sua leitura. “Nonada. (...) Deus esteja.” Era uma edição com capa roxa, cheia de motivos de jagunços, assim impressos para dar a impressão de uma xilogravura. Um livro muito bonito e bem impresso, com um poema de Carlos Drummond de Andrade em fac-símile na abertura, sobre João Guimarães Rosa, escrito, se não me engano, por ocasião da morte do romancista.

Grosso modo, infelizmente, eu já conhecia partes do enredo, sobretudo, o desfecho surpreendente, por razão de uma série que fez a adaptação do romance para a televisão. No entanto, não obstante conhecer parte fundamental de seu desfecho, a leitura foi apaixonante, ao passo que também foi difícil. Cheia de avanços, retrocessos, e longas paradas, onde eu tinha que reler muitas páginas para retomar o fio da história. Guimarães Rosa, mesmo não sendo um sertanejo em sua vivência, o foi, como exímio observador, ao captar muito de sua essência e transferi-la, fazendo uso de uma linguagem praticamente própria, de forma magistral para seus contos e romances. Ler Guimarães Rosa, é respirar pela tempo da leitura, o sertão absoluto, dos jagunços e das cantigas, o sertão das roças e dos cantos caboclos perdidos na imensidão de nosso país-continente, o sertão das moças casadoiras, a casa de barro, o fogo de lenha nos fogões antigos de trempes enferrujadas, os caboclos banguelas no seu eterno contar de “causos”, os rios caudalosos e mofinos que se ajuntam ao velho Chico que desce dos Geraes para o sem fim dos campos baianos. Ler João, é se encontrar no fantástico dos contos de Primeiras Estórias ou perdido nos rincões ou entre os “famigerados” de Sagarana.

Eu levei tempo pra entender a profundidade da obra de João, se era “fabulista” ou “fabuloso”, para dizer dos versos de Drummond. Entendi e o abracei ainda que tardiamente como fabulante no redemunho do sertão-mundo. João Guimarães Rosa, é o nome brasileiro que figura ao lado de nomes como Júlio Cortazar, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Marquez, no que foi chamado boom latino americano, momento em que a América latina, e seus expoentes literários, mostraram toda a potência e pujança de histórias vividas e inventadas nos confins de uma América pobre, analfabeta, longe de todos os mundos e ao mesmo tempo rica, inventiva, bela e poderosa. Uma América, apenas possível de entender sob os olhos ligeiros e precisos de um Riobaldo, apenas viável na muda tragédia de Diadorim, uma América só existente na mesma mansidão e valentia de um Augusto Matraga, no desespero incontido de Sorôco.

Fosse João vivo, nesse vinte e sete de junho contaria 109 anos. Teria contado muitas outras “estórias” além do muito que contou. Viva Guimarães Rosa.

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